terça-feira, 27 de outubro de 2015

Como não crer em Deus(?)


Aprendi na minha tenra adolescência a depositar na fé em Deus todos os meus pensamentos, palavras, atos, passos, momentos, decisões e suposições.

Isso significa dizer que a crença – ou o que construí como crença a partir da linguagem comum do grupo e do partilhar de experiências coletivas que vão moldando e resignificando as individuais – passou a ser meu guia. A crença – e todas as respostas que ela me trazia – passou a ser, ao fim e ao cabo, Deus.

Deus respondia detalhes. Onde ir. Quando ir. O texto bíblico que pregar. Com quem (não) namorar.
Depois, decidiu minha carreira – deixei de lado o sonho do magistério para ir ao Seminário e ser pastor.

Deus me impediu de ir para outra Igreja, ao longo dos muitos conflitos que vivenciei na minha comunidade e com meu pastor.

Depois de formado, Deus me fez esperar a saída do pastor da Igreja em que me converti, para assumir o pastorado ali. O problema é que outros 11 candidatos ouviram o mesmo dEle. E uma candidata. ‘Disputei’ com todos eles – e ela – a preferência da congregação.

Fui nomeado pela Igreja como ‘evangelista’ para dirigir cultos e, neles, apresentar os candidatos ao pastorado da Igreja, que estava sem pastor desde dezembro. Tente se esforçar e compreender: eu, um dos candidatos, apresentando outros candidatos e seus atributos. Eu, querendo ser o pastor da Igreja, tendo ouvido Deus dizer que assim seria, apresentando outros que talvez – ou com certeza? – tivessem ouvido o mesmo.

Eu, com 22 anos. Recém formado. Cheio de expectativas.

Ao responder o questionário da Comissão de Sucessão Pastoral, prometi me casar tão logo fosse ordenado. Era um pré-requisito.

Dois candidatos despontaram. Eu e mais um, capitão capelão do Exército.

Chegou o dia da eleição. Fui escolhido pela comunidade. Muitos jovens e adolescentes votaram em mim. Boa parte do coro. A ala mais idosa e outros líderes importantes votaram no capitão. Tive mais votos que os outros candidatos juntos. Era a confirmação de Deus.

Fui ordenado em julho. Casei-me em setembro. Eu mesmo convoquei meu concílio de ordenação. Eu mesmo publiquei no jornal da denominação a tradicional chamada ao concílio. Eu mesmo escolhi o pregador da noite de posse. Deus falava de maneira clara. Mas cada palavra dEle vinha acompanhada de sofrimento e solidão. Eu era o Messias quase-perfeito.

Essa experiência me produziu marcas profundas. Aprendi como Deus age e fala comigo e com a Igreja.

Depois disso, o primeiro elemento mágico que tratei de eliminar da minha vida foi o Diabo. Tarefa difícil. Era muito fácil tê-lo como culpado, tentador, dono dos males, das más intenções e dos inúmeros problemas que enfrentava na minha descoberta como pa(i)stor daquela comunidade.

Mas ele não fazia mais sentido para mim. Admiti, primeiro para mim mesmo e depois nas minhas pregações, que ser livre é escolher um caminho e responsabilizar-se por ele. Essa foi a pior (ou melhor?) confissão que poderia fazer para mim mesmo. Por que, claro, ela tinha consequências imediatas.

Sem a cara, como acho a coroa?

Não achei. Deu no que deu. Eis-me aqui.

A lógica ‘perfeita’ da fé puritano-pietista-evangelical-brasileira é: se funciona, se dá certo, se as pessoas ficam felizes, se o doente se cura, se o doente morre, se o pneu fura: é por que Deus quis ou permitiu. E quando Deus quer até o Diabo vira instrumento dele. Como foi com Jó.

Deus controla tudo. É só confiar nEle. Só esperar. Só agir conforme a direção dEle. Só isso, só aquilo... Só. Deus.

Aí você resolve que vai ocupar esse lugar: vai decidir, vai escolher, vai optar, vai dirigir, vai guiar... Vai assumir tudo. Inclusive as consequências. Sim, por que se Deus te manda para algum lugar, se Ele te diz algo, Ele te garante. Se Ele disse, vai dar certo. Se der errado, é por que você confundiu a voz de Deus com a vontade da sua carne. Ou pior: com a voz do Diabo. Esse pecado é do tipo ‘foda’. Sempre acaba em merda.

Esse texto é fruto de um sentimento que me brotou hoje. Estava com minha filha no ônibus. Ela dormia no meu colo. Ouvi um barulho estranho na rua. Parecia uma confusão. Num piscar de olhos passa pela minha cabeça que pode começar um tiroteio. Já me imagino deitando sobre minha filha para protegê-la. Sim. Sou bem ‘neurótico’. O que melhor, num contexto de caos, do que dizer: ‘Deus, estou em tuas mãos!'?. É muito fácil e bom crer em Deus. Difícil é respirar fundo e pensar no que está acontecendo ao seu redor. Pensar numa saída. Pensar que pode ser apenas um torcedor mais fanático do que eu gritando na rua. Ou um bêbado na zueira. Ou alguém brigando no trânsito...

Quando penso em minha filha e na fragilidade da vida, nas tantas e milhões de coisas que podem sair do controle, no imprevisível, no avião caindo, num relâmpago, numa meningite... É muito difícil não crer em Deus. Mas tem sido a minha escolha. Dolorosa. Geradora de culpa e medo. Escolha que me obriga a conviver com a incerteza, com a fraqueza, com a debilidade, com a minha limitação humana.
Posso mudar de ideia? É claro. Sempre. Ou nunca.

Talvez você diga que julgo ‘Deus’ como inexistente em função das minhas experiências ruins. Das tantas coisas que vi e vivi. Das minhas decepções. Esse texto não quer te convencer de nada. Só quer ser um peito aberto para a minha experiência.

Perguntaram-me se acredito em Deus...

Sou um construtor de altares. Construo meus altares à beira de um abismo. Eu os construo com poesia e beleza

ACONTECEU AO final de um debate sobre educação promovido pela Folha. Chegada a hora das perguntas uma senhora me perguntou algo que nada tinha a ver com educação. Perguntou porque lhe doía: "O senhor acredita em Deus?" Houve tempo em que era mais fácil acreditar em Deus. Hoje até o Papa se atrapalha. Na sua visita ao campo de concentração de Treblinka perguntou o que não deveria ter perguntado: "Onde estava Deus quando esse horror aconteceu?"

Heresia porque a pergunta silenciosamente afirma que Deus não estava lá. Se estivesse não teria deixado aquele horror acontecer. Pois Deus não é amor e todo poderoso? Se estava lá e deixou acontecer ou ele não é amor ou não é todo poderoso. Por outro lado, se ele não estava lá ele não é onipresente...

Depois do atentado terrorista ao World Trade Center o "New York Times" publicou um artigo com essa mesma pergunta: Onde estava Deus? Se estava lá, por que deixou acontecer?

Dietrich Bonhoffer, pastor protestante que foi enforcado por haver participado de um frustrado atentado para assassinar Hitler -às vezes não há como fugir: ou matar um único, para que muitos não sejam mortos, ou, para preservar a pureza pessoal, não matar esse único e deixar que milhares sejam mortos; a inocência pode ser mais criminosa que o crime..., lutou com essa pergunta: "Onde está Deus?" Sua resposta foi simples: "Deus está aqui, mas ele é fraco..."

Se Deus existe e é forte, como perdoá-lo por permitir que aconteça o horror de sofrimento que não deveria acontecer? Mas se Deus é fraco ou não existe, então seria possível perdoá-lo e amá-lo. Aí choraríamos e diríamos: "Se Deus existisse e fosse forte isso não aconteceria..." A gente fica, então, com saudade do Deus que não existe. Mas eu não disse nada disso para aquela senhora. Apenas perguntei de volta, pedindo um esclarecimento: "Acreditar em qual Deus? Há tantos... Homens ferozes e vingativos têm um Deus feroz e vingativo que mantém, para sua própria alegria, uma câmara de torturas chamada Inferno para vingar-se dos seus desafetos. Há o Deus jardineiro que criou um Paraíso e mora nas árvores e nas correntes cristalinas. Há o Deus com alma de banqueiro que contabiliza débitos e créditos... Há o Deus da Cecília Meireles que se confunde com o mar... Há o Deus erótico que inspira poemas de amor carnal... Há o Deus que se vende por promessas e faz milagres... E há também o Deus criança de Alberto Caeiro e Mário Quintana. Qual deles?"

Ela ficou em silêncio, meio perdida. Então lhe respondi com os versos do Chico: "Saudade é o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já morreu".

E perguntei: "Qual é a mãe que mais ama? A que arruma o quarto para o filho que chegará amanhã ou a que arruma o quarto para o filho que nunca chegará?".

E acrescentei: "Sou um construtor de altares. Construo meus altares à beira de um abismo. Eu os construo com poesia e beleza. Os fogos que acendo sobre eles iluminam o meu rosto e aquecem o meu corpo. Mas o abismo continua escuro e silencioso..."

Aí, provocado pela pergunta daquela mulher desconhecida escrevi um livrinho cujo título é a pergunta que ela me fez: "Perguntaram-me se acredito em Deus". Àquela mulher o meu muito obrigado...

Rubem Alves
Folha de São Paulo, 03 de abril de 2007.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0304200726.htm

Um comentário:

  1. Faz sentido pra mim pensar em Deus como a essência de tudo (Berkeley) e na ausência de Deus como o mal (Agostinho).

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