Neste
tempo da minha vida, não me imaginava mais discutindo questões relativas à
população LGBTT. Para mim, seu direito é inalienável e sua dignidade não pode
ser questionada.
No entanto,
conversando com um amigo evangélico, percebo que ainda há muito o que ser
feito. E, por vezes, acredito que nossa geração é responsável por misturas
esquizofrênicas... Ao mesmo tempo em que mergulhamos na ciência e na
tecnologia, usamos parâmetros considerados universais e absolutos para julgar
algo como ‘o amor’. Loucura, né?
Recebi
desse amigo uma pequena lista de perguntas. Não sei se ela é de sua lavra ou de
outrem. Já está na minha ‘caixa de entrada’ há 30 dias. Não respondi antes por
preguiça mesmo...
Hoje tive
um pequeno refresco e me dei ao luxo de gastá-lo tentando responder às
perguntas.
Compartilho
com você. Se tiver paciência e coragem, leia e opine. Se não, deixe pra lá.
1.
Desde
quando você acredita que o casamento gay é algo para ser celebrado?
Celebro o
casamento gay do mesmo modo como celebro as mulheres que conquistaram seus
direitos ou os negros que são livres – ainda que ambos permaneçam diariamente
lutando para serem respeitados.
Celebrar
o casamento gay é entender que o outro, diferente de mim, tem os mesmos
direitos que eu. Se prezo pela justiça e pela igualdade, não me resta outro
caminho.
A série de perguntas abaixo se referem à Bíblia. Pretendo respondê-las em
bloco.
2.
Quais
versículos da Bíblia te levaram a mudar de ideia?
3.
Como
você argumentaria, a partir da Escritura, que a atividade sexual entre duas
pessoas do mesmo sexo é uma bênção a ser celebrada?
4.
Quais
versos você usaria para mostrar que o casamento entre pessoas do mesmo sexo
pode representar adequadamente Cristo e a igreja?
5.
Você acredita que Jesus não teria problemas
com comportamento homossexual consensual entre adultos em um relacionamento
comprometido?
6.
Se
sim, por que Ele reafirmou a definição de Gênesis de que o casamento é entre um
homem e uma mulher?
7.
Quando
Jesus falou contra a porneia, quais pecados você acha que ele
estava proibindo?
8.
Se
algum comportamento homossexual é aceitável, como você entende a “mudança”
pecaminosa que Paulo destaca em Romanos 1?
9.
Você
acredita que passagens como 1 Coríntios 6.9 e Apocalipse 21.8 ensinam que a
imoralidade sexual pode te afastar do céu?
10.
A
quais pecados sexuais você pensa que essas passagens se referem?
A primeira noção que precisamos
desconstruir é a de que existe um ‘livro’ chamado ‘Bíblia’, como se a ela fosse
possível ser determinado um autor ou mesmo um conteúdo. O que conhecemos e
chamamos de ‘Bíblia’ é a reunião de 69 livros diversos, para os evangélicos,
escrito por autores diversos, em diversas épocas. Esses livros, ao longo do
tempo, sofreram diversos tipos de intervenção. Não há sequer um único desses
livros com uma linha que seja que se possa chamar de ‘original’. Todos foram
copiados, compilados, plasmados, interpolados, revisados e agrupados de maneira
tal a corresponder às exigências políticas de um determinado grupo, num determinado
período da História.
Isso significa que a ‘Bíblia’ é
fruto da experiência humana, marcada por aspectos culturais de cada um dos
livros que a compõe e editada ao longo dos anos. Isso para não falar das
traduções...
É estranho pensar que eu possa
utilizar como imperativo ético um livro como o do Levítico. Ele condena
relações sexuais entre um homem e uma mulher menstruada, proíbe comer carne de
porco, camarão, usar roupa com dois tipos de tecidos diferentes, manda matar feiticeiras...
Ou Deuteronômio, que determina a morte de filhos desobedientes.
A respeito de Jesus, o que pode
ser historicamente comprovado é muito pouco. Era um homem da Galileia,
analfabeto, monoglota e líder carismático. Seu movimento teve curta duração,
mas os ensinos atribuídos a ele se espalharam por uma série de razões
diferentes. A partir do que se pode saber de seus discursos, o que é muito
pouco, diversas comunidades se organizaram e, à sua moda, moldaram a imagem e o
ensino de Jesus. Por isso, temos quatro evangelhos na Bíblia. Eles têm marcas
distintas. Além desses, muitos outros foram escritos, mas considerados indignos
de fazer parte do ‘canon’ – o conjunto de livros considerados referências da ‘inspiração
divina’. Qual critério foi utilizado? Por que quatro e não outros? Quantos dos ‘outros’
estão presentes nos quatro ou nos demais livros do chamado ‘Novo Testamento’?
Duvido muito que Deus tenha ‘descido
dos céus’ num determinado momento e indicado aos ‘redatores’ os livros que
deveriam fazer parte da ‘Bíblia’. Portanto, acredito no que já disse: todas as
escolhas são cultural e historicamente determinadas.
Já Paulo, um importante nome do ‘Novo
Testamento’, a quem se atribui popularmente a autoria de treze livros, é outra
figura disputada. De sua ‘Carta aos Romanos’ se usa absurdamente o capítulo 1,
onde ele consagraria a ira de Deus sobre os ‘homossexuais’. Seria muito
trabalhoso discorrer aqui sobre a origem do termo ‘homossexualidade’ e a
difícil correlação entre ele e palavras do ‘grego paulino’. É muito mais
simples a pergunta: seguimos Paulo no séc. XXI? Mulheres são submissas aos
homens? Temos a poligamia aceitável para aqueles que não são líderes na Igreja?
A escravidão é algo tolerável?
Não. Não acredito no céu.
Desculpa se te magoei. Creio, hoje, – por que amanhã posso pensar diferente –
que, como energia que somos, nos transformamos ao morrer. Portanto, não há
qualquer razão para eu imaginar que ‘Deus Pai’ estabeleceu uma ‘Lei’ segundo a
qual o pecador deve morrer e que, por essa ‘Lei’, ele entregou seu Filho-Jesus
para morrer em nosso lugar. Se Ele pôde mudar a Lei para que Jesus pudesse
morrer por todos, poderia simplesmente ter nos considerado perdoados, sem que
fosse necessário entregar Jesus nas mãos dos carrascos romanos.
11.
Quando
você pensa na longa história da igreja e sua reprovação quase universal da
atividade homossexual, qual parte da Bíblia você entendeu e Agostinho, Calvino
e Lutero não entenderam?
Agostinho vivia numa sociedade
machista, patriarcal, assassina e desigual. Ele usou a ‘Bíblia’ para condenar
isso? Calvino mandou enforcar, Lutero mandou matar... Pelo visto, eles não
entenderam muitas partes da ‘Bíblia’. E entenderam muito bem diversas outras...
A história da Igreja – ou das
Igrejas – é marcada por sangue. ‘Em nome de Jesus’ muita gente morreu. E
continua morrendo. Eu decidi me livrar desses crimes.
12.
Quais
argumentos você usaria para explicar para os cristãos da África, Ásia e América
do Sul que o entendimento deles sobre a homossexualidade é biblicamente
incorreto e o seu novo entendimento não é condicionado pela cultura?
Qualquer
entendimento é condicionado pela cultura. No caso dos ‘cristãos de África, Ásia
e América do Sul’, a cultura deles é esmagada constantemente pelo ‘Deus
Ocidental Estadunidense’ da ‘Bíblia’.
13.
Você
acredita que Hillary Clinton e Barack Obama, entre outros políticos, foram
motivados por arrogância e preconceito quando, por quase todas as suas vidas,
até pouco tempo atrás, definiram o casamento como o relacionamento pactual
entre um homem e uma mulher?
Hillary e
Obama, como ‘bons políticos’, querem uma coisa só: votos. Se for preciso dizer
que o Sol gira em torno da Terra, dirão.
14.
Você pensa que crianças se sairão melhor com
uma mãe e um pai?
Crianças, como nós adultos,
precisam de amor e respeito. Isso, às vezes, vêm de pai e mãe. Outras, só de pai,
ou só de mãe. Ou de tio, tia, avô, avó, madrinha... Ou de dois pais. Ou de duas
mães.
15.
Se
não, qual pesquisa você apresentaria para apoiar essa conclusão?
A mesma pesquisa que diz que ‘pai
e mãe’ em casa são garantia de sucesso dos filhos.
16.
Se
sim, a igreja ou o estado tem algum papel em promover ou privilegiar as
condições para que as crianças tenham uma mãe e um pai?
Os
deveres do Estado estão definidos na Constituição Brasileira. Os direitos
fundamentais dos indivíduos também: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.
O Estado não legisla sobre subjetividades... As Igrejas têm liberdade para
construir suas doutrinas, desde que não firam esses direitos fundamentais.
17.
O
propósito e o fim do casamento apontam para algo maior do que a realização
emocional e sexual de um adulto?
Ou ‘um adulto e uma adulta’? Ou
dois adultos? Ou duas adultas?
O casamento deve ter o propósito
e o fim que o casal quiser determinar. Acredito que não exista receita pronta.
18.
Como
você define casamento?
Pergunta difícil. Hoje, eu
definiria como a união de duas pessoas com o desejo de partilhar a vida e o
amor.
19.
Você
acredita que parentes próximos deveriam poder se casar?
O que são parentes próximos?
Estamos falando dos valores da cultura ocidental? Não vejo como irmãos que
cresceram juntos possam sentir mútua atração sexual. No entanto, se sentirem,
quem sou eu para julgar a dignidade dessa relação?
20.
O
casamento deveria ser limitado a apenas duas pessoas?
Em
termos civis e legais, acredito que sim. Mas isso pode mudar, de acordo com a
necessidade e as práticas culturais.
21.
Com
base em quê, se há alguma, você impediria adultos em consentimento, com
qualquer grau de parentesco ou em qualquer número, de se casarem?
Não posso impedir alguém de
exercitar sua liberdade, quando ela não fere meus direitos fundamentais.
22.
Deveria
haver um requisito mínimo de idade para se obter uma licença de casamento?
Do ponto de vista legal, a
maioridade. Hoje, 18 anos.
23. Igualdade
implica que qualquer um que deseje se casar possa ter qualquer tipo de
relacionamento definido como casamento?
24.
Se
não, por que não?
Igualdade
significa poder conceituar o que é casamento. Esse conceito mudou ao longo da
história e é diferente em outros lugares do mundo. Portanto, culturalmente
determinado. Hoje, no Brasil, avançamos no sentido de abranger como casamento
as relações homoafetivas monogâmicas.
25.
Irmãos
e irmãs em Cristo que discordam da prática homossexual deveriam poder exercitar
suas crenças religiosas sem medo ou punição, retribuição ou coerção?
Desde que o façam em privado, sem
estimular o ódio ou restringir direitos fundamentais da população.
26.
Você
vai defender seu amigo cristão quando seu empregos, seu crédito, sua reputação
e sua liberdade forem ameaçados por conta dessa questão?
Isso é algo tão distante e
fantasioso que nem preciso me dar ao trabalho de responder. Agora, é preciso
defender quem, como homossexual, tem seu emprego, crédito, reputação, liberdade
e até vida ameaçados por sua orientação sexual.
27.
Você
vai se posicionar contra o bullying e a opressão de todos os
tipos, quer seja contra gays e lésbicas ou contra evangélicos e católicos?
É preciso ser terminantemente
contrário a qualquer iniciativa que coloque em risco os direitos fundamentais.
Bem diferente, por exemplo, de quando bruxas e outros eram mandados para a
fogueira pelos ‘cristãos’.
28.
Como
a igreja evangélica tem falhado frequentemente em levar a sério os divórcios
não bíblicos e outros pecados, quais passos você vai tomar para se certificar
que os casamentos gays sejam saudáveis e de acordo com os princípios da
Escritura?
Quem constrói a saúde de um
casamento, hetero ou homossexual, é o casal.
29.
Casais
gays em relacionamentos abertos devem ser sujeitos à disciplina eclesiástica?
Essa é a pergunta dos hipócritas
de plantão nas Igrejas. Quantos são os casais heteros em relação veladamente
aberta que sofrem disciplina em suas igrejas? Depende do dízimo, né?
30.
É
pecado pessoas LGBT se envolverem em atividades sexuais fora do casamento?
Pecado é
reduzir a sexualidade ao ato sexual. Pecado é negar a natureza de seu corpo e
seus desejos. Pecado é forçar alguém, constranger, obrigar, humilhar,
submeter...
31.
O
que as igrejas abertas e inclusivas farão para falar profeticamente contra
divórcio, fornicação, pornografia e adultério, quando estes forem descobertos?
Não faço a mínima ideia. Não sou
parte de igreja inclusiva. Mas, como cidadão, ficaria feliz se as igrejas
usassem seus recursos para defender o respeito aos direitos fundamentais: vida,
liberdade, igualdade, segurança e propriedade, ao invés de se preocupar com a
privacidade alheia.
32.
Se
“o amor vence”, como você define amor?
33.
Quais
versos você usa para estabelecer essa definição?
O amor nem sempre vence...
34.
Como
a obediência aos mandamentos de Deus molda nosso entendimento de amor?
Deveria ser algo assim: “Ama a teu próximo como a
ti mesmo”.
35.
Você
acredita que é possível amar alguém e discordar de decisões importantes que ela
tome?
Claro que sim.
36.
Se
apoiar o casamento gay é uma mudança para você, mais alguma outra coisa mudou
no seu entendimento da fé?
Quase
tudo. Graças a Deus.
37.
Enquanto
evangélico, como o seu apoio ao casamento gay te ajudou a se tornar mais
apaixonado pelos distintivos evangélicos tradicionais, como foco no novo
nascimento, o sacrifício substitutivo de Cristo na cruz, a confiabilidade total
da Bíblia e a necessidade urgente de evangelizar os perdidos?
Esses ‘distintivos tradicionais’
são um resumo do ‘The Fundamentals’, série de livros publicados no início do
séc. XX, nos EUA, como ‘testemunho da verdade’ contra as mudanças do mundo. É
daí que surge o termo ‘fundamentalismo’. Preciso falar mais?
38.
Quais
igrejas abertas e inclusivas você apontaria como lugares onde pessoas estão
sendo convertidas ao Cristianismo ortodoxo, pecadores estão sendo alertados do
julgamento e chamados ao arrependimento e missionários estão sendo enviados
para plantar igrejas entre os povos não alcançados?
Igrejas inclusivas e cristianismo
ortodoxo são termos contraditórios. Acredito que missionários são aqueles que
se entendem com uma missão: em nossa terra ou em outras, mas desejosos de
servir à humanidade na luta por justiça, igualdade e direitos.
39.
Você
espera estar mais comprometido com a igreja, com Cristo e com as Escritura nos
próximos anos?
Não.
Igrejas são o que sempre foram: lugares de opressão de uns e enriquecimento de
outros. Cristo não é sinônimo de Jesus. Escrituras me servem como documento
histórico, ora como fonte de inspiração, por sua beleza e profundidade, ora
como objeto de crítica por sua agressividade e violência.
40.
Quando
Paulo exorta “os que tais coisas praticam” e aqueles que “aprovam os que assim
procedem”, quais pecados você pensa que ele tinha em mente?
Já
falei de Paulo... Pouco, mas acho que o suficiente.
Quero
apenas terminar com algumas provocações.
Você,
cristão ou cristã, que tanto se preocupa com a vida sexual alheia, usa seus
órgãos sexuais com a ‘finalidade designada por Deus’? Pensando em termos bem
objetivos, Deus criou o sexo para a reprodução. Logo:
1.
Métodos
contraceptivos são pecaminosos, não são naturais;
2.
Sexo
oral é pecado – boca não foi feita para isso;
3.
Beijar
mamilos ou qualquer outra parte do corpo é pecado – Deus criou cada parte do
corpo para um fim específico;
4.
Sexo
anal é um pecado inominável.
A
quem se interessar:
Sobre
fundamentalismo: http://periodicos.pucminas.br/index.php/interacoes/article/view/8062/7659
O
excelente documentário: “Por que a Bíblia me diz assim” - https://www.youtube.com/watch?v=E1E-wbF-UAc
Filmes:
Milk
– a voz da igualdade.
Filadelfia.