quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Como vivenciei negritude na Igreja















Uma boa parcela da Igreja era de negros.

Gente que veio de longe. De outras cidades. De outros estados.

Gente que trabalhou demais comigo. Com quem compartilhei lágrimas e sorrisos. Que abriu as portas de casa para mim. Irmãos.

Sempre gostei de ouvir suas histórias. De conhecer um pouco de suas vidas, da trajetória  pessoal.

Um diácono, fundador da Igreja, meu braço direito, que já passava dos sessenta anos, tinha uma doença rara no pulmão. Consequência de anos lavando navios com jato de areia. O médico tinha lhe dado meses de vida quando descobriu. Ele foi aposentado por invalidez, e agora ‘trabalhava para o Senhor’. E como trabalhava. Desde o diagnóstico, passaram-se dez anos. E ele estava lá. Com algumas restrições, mas feliz. Fazendo de tudo.

Donato viera de São Fidélis, norte fluminense, na década de 60, morar com parentes, numa favela do Rio. Fez bico de servente de pedreiro. Na casa de uma ‘patroa’, precisou ‘aliviar o ventre’. Alguém lhe indicou o banheiro. Ele entrou e, rapidamente, saiu. E saiu reclamando que a louça estava limpa. E, com a louça limpa, não poderia defecar ali, pois sujaria tudo. Então, uma boa alma resolveu apresentar o banheiro e o vaso sanitário para Donato. Corriam os anos 70 e eles não se conheciam.

Donato se casou com Rose. Viviam de aluguel, num terreno no morro. Quando se converteram, Rose recebeu a proposta de ser zeladora da Igreja. O terreno da Igreja era grande. Foi construída uma pequena casa, e eles passaram a viver ali. Ficariam naquela casa por mais de duas décadas.

Rose é do Espírito Santo. Nasceu numa fazenda em que seu pai trabalhava e vivia. Ouvi uma história de sua infância que nunca mais vou esquecer. Seu pai plantava e colhia para o patrão. Era o patrão quem escolhia, da colheita, o que ficaria para a família de Rose. Boa parte ia para a Casa Grande, como ainda chamavam, e outra para ser vendida no centro da cidade. O que sobrasse, ficava com a família.

Numa manhã de muito trabalho, o pai de Rose caiu do carro de boi. Bateu com a cabeça. Ficou sem poder trabalhar por um bom tempo. O dono das terras foi ‘visitar’ o doente. “Francisco, onde estão seus filhos?”. Eram cinco. Três mulheres e dois homens. “Estão na escola, patrão”. O patrão gargalhou e respondeu: “Pois trate de colocar a negrada na lavoura, se você não pode trabalhar, eles têm que dar conta!”. Rose e seus irmãos só voltaram a estudar na idade adulta.

...

Essas histórias foram contadas num pequeno grupo de estudos. O tema era “O Bom Samaritano”. Não sei por que cargas d’água entramos a discutir questões de negritude. No grupo, estava uma mulher, negra, contrária à política de cotas. Ela dizia que os negros não eram inferiores para precisar disso.


Depois da história de Donato e Rose, ninguém precisou argumentar mais nada. Foi ali, naquele chão sagrado da vida, num rincão perdido do Rio, que os olhos se abriram. 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Pastores e bilhetes debaixo da mesa











Nós, humanos, somos um monumento ao desequilíbrio, à dualidade, aos paradoxos. Amor e ódio. Apego e desapego. Indiferença e preocupação. Fé e incredulidade.

A espiritualidade típica das igrejas de cunho puritano-pietista-evangelical tenta negar esses antagonismos, dando à vida um equilíbrio matemático. O sistema de crenças parece perfeito. Parece responder a tudo. Parece manter a viagem tranquila. Mas, quando a realidade nos faz questionar, o castelo de areia desaba.

Corria o ano de 2009. Por ironia do destino, presidi uma comissão que cuidou de um trabalho evangelístico autodenominado ‘Cruzadas’. Eu sei que não poderia haver nome pior. Uma organização do sul dos Estados Unidos, que recruta voluntários para uma semana de ‘impacto evangelístico’, com associações de Igrejas. Eu presidi o grupo de oito igrejas, do nosso bairro, que aderiram. Receberíamos gente de todo o Brasil e, sobretudo, bolivianos.

Quem acompanha este blog, sabe que o pastor da maior igreja do bairro havia ‘profetizado’ a transformação da igreja que eu pastoreava em cabaré. A comissão da Cruzada decidiu solicitar o templo daquela igreja, grande e com estrutura, para o culto de abertura da semana evangelística.

Essa brincadeira levou um ano de preparação. Diversas reuniões. Uma em Resende. Um retiro em Areal. Em nenhum desses eventos aquele pastor estava. Nem nas diversas reuniões que aconteceram na igreja dele, onde a Associação tinha sua sede.

Noite do culto de abertura. Lá vou eu para o púlpito daquela igreja. Comigo, a secretária nacional de Cruzadas e diversos membros da comissão local. Entre eles, um pastor que havia sido membro daquela igreja. Saíra de lá brigado com o pastor-profetizador-do-cabaré. Ele era o membro da equipe responsável pela música e regeria os hinos durante o culto. Regeu o primeiro e se sentou na primeira fila.

Alguns minutos depois de iniciado o culto, o pastor-profetizador-do-cabaré me enviou um bilhete. Um pequeno pedaço de papel, escrito por um terceiro, que dizia: “O pastor Joe manda avisar que o Jaspion (ele não chamou o desafeto de ‘pastor’) está proibido de subir ao púlpito dessa igreja”. Tentei avistar o pastor Joe, mas ele não estava no templo.

Um mal estar tomou conta de mim instantaneamente. Fiquei sufocado pela responsabilidade de continuar dirigindo o culto, ainda com a incumbência de tomar uma atitude em relação ao pastor Jaspion. Ele estava do meu lado e notou meu desconforto. Ficou desconfiado. Decidi lhe mostrar o bilhete e ele resolveu permanecer sentado, não regendo os outros hinos.

Para mim, a semana de evangelismo acabava ali. Como seria possível organizar e mobilizar tanta gente para, por fim, termos crentes capazes de produzir desafetos e de lhe negarem acesso ao púlpito. Não sabia, não quis saber e continuo não sabendo o que aconteceu entre aqueles dois no passado. Quem tinha razão na briga ou não. Aquela noite representava um desejo de mudança, de ver um novo tempo no bairro. Foi o tempo, na verdade, de eu descobrir que isso não existe.

Falar do amor de Deus, domingo após domingo, durante anos. Liderar uma grande igreja. Pregar em diversos lugares. Viajar o mundo. Conhecer gente. E continuar capaz de profetizar o cabaré. Continuar capaz de mandar bilhete para tirar desafeto do púlpito. Castelos de areia.

Nenhum de nós, certamente, está acima do bem e do mal, ou é incapaz de, vez por outra, cometer ou reproduzir injustiças. Isso, no entanto, não faz parte do óbvio na vida de um pastor tradicional. Ele é visto – e muitas vezes se coloca – num lugar de excelência. De santidade. De exclusividade. De ‘unção especial’. De ‘Vox Dei’. E assim, como se não fosse nada, manipula o que se pode ver de si.

Meu maior medo sempre foi o de, ao me valer da minha posição de pastor, usar a Bíblia para atacar alguém, fazer críticas pessoais, abusar do ‘poder’. Sei que, eventualmente, até sem querer, acabei fazendo isso. Mas posso me orgulhar de nunca ter feito de forma pensada, planejada, orquestrada, desejada. Levantar a mão contra alguém, fazendo uso de privilégios, de relações, de bilhetes debaixo da mesa. Graças a Deus.

Em 2009, eu tinha 27 anos. Tentava, desesperadamente, encontrar um modelo de igreja/pastorado que se adequasse à realidade da minha comunidade e que fosse, obviamente, compatível com as minhas constantes mudanças de visão. Tentei. Muito. Só Deus sabe o quanto. Lutei, muitas vezes de forma solitária, errando e acertando. Até que, movido por um complexo conjunto de fatores, resolvi desistir daquele ambiente. Daquela caminhada. Escolhi/fiz/faço/farei outros caminhos.

Sei que muitos bilhetes ainda correm debaixo das mesas. Quanto maior a Igreja, maiores as chances de disputa de poder, de falência ética, de degradação. Penso que assim também acontece em diversas organizações. Mas o ‘orgulho’ do fundamentalismo é, justamente, julgar-se o melhor, superior, único, divino. Tão mortal como qualquer outro.

Fico pensando na profecia do pastor. Ela não se cumpriu. Pelo menos, não lá na nossa pequena Igreja. Ainda assim, tenho a ligeira desconfiança de que um cabaré receberia Joe e Jaspion de braços e pernas abertas.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Deus, o projeto e as pulgas














Acho que foi em 2008. Não sei ao certo. Começamos na Igreja um projeto que visava criar um segundo turno escolar para crianças e adolescentes. As igrejas possuem uma estrutura física mal aproveitada. Espaços que permanecem fechados ao longo de quase toda a semana. A ideia era usar isso. E, claro, gente.

Juntamos uma galera. Conversamos. A turma topou. Muito por conta da minha empolgação, acreditando em mais uma ideia para ‘salvar o mundo’. A Igreja acreditou em várias. Em algumas, mais do que eu. Ainda que existisse uma distância entre o que eu propunha e a maneira como a liderança enxergava a ideia, não posso reclamar de falta de apoio.

Tínhamos um orçamento muito limitado. Algo em torno de seis mil reais. Um terço dele pagava meu salário como pastor. Decidimos dedicar outro terço do orçamento para o projeto e o restante, o outro terço, pagaria as demais despesas da Igreja. Era andar na corda bamba.

Fizemos uma campanha de divulgação na comunidade. Iniciamos no segundo semestre. Houve mais de sessenta inscrições. Recebemos a todos. Gratuitamente.

Fomos até o Mercadão de Madureira comprar material escolar. Compramos aos montes. Coisa boa...

O corpo de voluntários era limitado. Eu me desdobrava para coordenar e cuidar da turma de adolescentes. Compramos uma mesa de totó usada. Recebíamos doações para o café da manhã e o lanche da tarde. E lutávamos muito para manter a turma sob algum controle durante as sete horas que passavam conosco. Uma turma de 8h00 às 11h30. Outra de 13h30 às 17h00.

A turma fazia o dever de casa. Montamos uma pequena biblioteca com livros doados. Criávamos outros exercícios e buscávamos caminhos para complementar as falhas do sistema público de educação. Segundas, quartas e sextas cantávamos os hinos. Nacional, Independência, República e Bandeira. Era a hora dos voluntários mais antigos sentirem-se saudosos dos seus tempos de escola. Eu, inclusive. Tentamos, com os adolescentes, trabalhar o significado das palavras ‘desconhecidas’ dos hinos. Tentamos...

Havia meninos e meninas no quarto ano que não sabiam ler. Havia um menino negro que levava o mesmo caderno para a escola e para o projeto. Em branco. Completamente. No fim do ano.

Foi um semestre intenso. Voluntários se desdobrando. Eu me sentindo completamente esgotado. Mas muito empolgado. Procurando formas e parcerias para aquele trabalho.

As salas de aula do novo templo ainda estavam em obras. Não havia mesas e cadeiras adequadas. A iluminação era precária. Mas as crianças não deixavam de ir... De alguma forma, a comunidade confiava na gente.

O preço mais alto que pessoalmente paguei foi o de tentar dar um caráter laico para o projeto. Não evangelizaríamos ninguém. Não era trabalho de catequese. Nenhuma criança ou seus pais eram obrigados a frequentar a Igreja para participar do projeto. O máximo que fizemos foi uma Ceia de Natal. O coro das crianças do projeto cantou uma das músicas da Cantata. Tiramos todos os bancos da Igreja. Alugamos mesas e cadeiras. Fizemos uma grande ceia com as famílias das crianças do projeto. Lembro-me disso com muito carinho.

Aquele foi também um ano eleitoral. Ano difícil. O assessor de um candidato a vereador me abordou numa tarde. Quis saber sobre o projeto. Sobre a personalidade jurídica. Falou e falou. Por fim, disse que se eu conseguisse um CNPJ de OSCIP poderia destinar uma emenda de um parlamentar de Brasília para o projeto. “Algo em torno de um milhão por ano”, disse ele. Não fiz um pedido sequer. Ele pediu uma ‘oração’. Orei por ele e sua família. Nunca mais o vi. Graças a Deus.

Fiz propaganda do projeto nas igrejas da minha denominação no bairro. Certamente alguns aposentados, ou gente com mais tempo, poderia nos apoiar. De um universo de treze igrejas, duas pessoas vieram ajudar. Nenhuma igreja se dispôs financeiramente. Era preciso acreditar muito.

O inusitado, então, veio nos visitar. Estava na mesa de totó com a turma de adolescentes. A bolinha caiu longe, no fundo do corredor do templo, ainda em obras. Lá, na última sala, havia um sofá velho, onde dormia um gato ‘invasor’. Ninguém sabia, mas a sala estava repleta de pulgas. O menino que foi buscar a bolinha saiu da sala carregando dezenas. E ensinou o caminho para milhares.

Em poucos dias, todo o primeiro andar do novo templo estava inundado de pulgas. O projeto foi suspenso por quase um mês. Tentamos de tudo: veneno, oração, dedetização amadora e profissional. Por fim, com muita perseverança e K-Othrine, conseguimos vencer.

 O pior de tudo foi ouvir, de membros de outras Igrejas: ‘Pastor, acho que isso é espiritual’.

...

O que pensar diante de tal declaração? Gente com ensino superior, de igreja grande, repetindo a cantilena e me olhando como se tivessem uma ótima explicação para o fenômeno, surpresos com minha indiferença.

As pulgas não venceram o projeto. Não me desanimaram. Não desanimaram o povo da Igreja.

A falta de apoio de gente ‘graúda’, endinheirada e instruída, sim.

Num daqueles anos fui pregar na maior Igreja do bairro, que havia organizado nossa Igreja há quase trinta anos. Era de lá o pastor que profetizou que nossa igreja se tornaria um cabaré. Eram de lá os que defendiam a tese das ‘pulgas espirituais’. Num dado momento da pregação, desabafei: ‘Vocês têm até elevador. Lá em cima no morro, estamos sem banheiro’.


Depois disso, naquela Igreja, não me chamavam nem para fazer oração silenciosa.