segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Quem dá a Deus, empresta aos pobres!?












Tomo a pena na mão para um capítulo que, talvez, sintetize um pouco da distorção entre direitos e obrigações, na mentalidade clássica do protestantismo de missão.

Conrado (nome fictício) era um coroa gente boa. Gostava de conversar, contar piada e histórias da sua vida empreendedora.

Seus pais eram espanhóis, agricultores. Ele nascera no interior de SP, vindo para o Rio estudar no tradicional colégio de nossa denominação. Por aqui ficou. Trabalhou muito. Mais que o normal. Fez fortuna. Mas expôs sua família à distância e frieza nas relações. Essa é, ao menos, a minha leitura.

Foi membro da Primeira Igreja do Rio. Depois, da maior Igreja de nosso bairro. Sua empresa era bem sucedida. A Igreja votava o alvo da campanha de missões. Ele esperava a arrecadação e, então, do próprio bolso, passava um cheque dobrando o valor. Mantinha a farmácia que atendia os necessitados da Igreja. Era membro de um importante clube de cavalheiros, onde também fazia sua “ação social”. Era vigoroso. Forte mesmo, do tipo que, nas obras do novo templo, manejava melhor do que eu uma picareta. Isso aos oitenta anos.

Em nossa Igreja, era uma espécie de padrinho. Socorria inúmeros necessitados. Socorreu a mim. Sem qualquer alarde. Bancou boa parte da obra do novo templo. Isso significa, pelas minhas contas, doações em torno de 150 mil reais. Financiava velórios, tratamentos dentários, cestas básicas...

Sua empresa, já com a terceira geração da família à frente, entrou em decadência. Testemunhei seu esforço para sustentar o negócio, injetando na empresa, pela venda do patrimônio pessoal, algo em torno de 2 milhões. Nada. A empresa afundou. Via-se como Jó. Orava como Jó.

Aquele homem afável e generoso era linha dura com aquilo que consideramos “direitos trabalhistas”. Ele reclamava de ter que dar férias a seus funcionários: “Eu vim da roça. Na roça, sem trabalho, não há comida. O agricultor não tira férias”. Claro que esbarramos nesse ponto algumas vezes. Eu o respeitava muito. E ele a mim. Gostava do garoto que viu crescer na Igreja.

Vi aquele homem morrer num hospital público. De maneira triste e solitária. Vi sua solidão no fim da vida. Vi que somos, de verdade, quase nada.

A zeladora da Igreja era empregada doméstica na casa dele. Daí veio minha maior surpresa.

Ela me procurou depois do falecimento, sem saber o que a família dele, distantes que moravam no mesmo bairro, faria com ela.

Eu imaginei que fossem demiti-la, já que provavelmente se desfariam do casarão em que ele morava, num ponto nobre do bairro.

Foi então que ela me revelou: em quase 10 anos, nunca recebeu vale-transporte, hora-extra, férias ou décimo terceiro. Não tinha nenhum direito trabalhista.

Perguntou-me o que deveria fazer diante disso. Disseram-lhe que, se entrasse na Justiça, teria que esperar anos para receber, já que havia muitos empregados da empresa dele na frente, aguardando suas indenizações.

Eu disse a ela, claramente: “Diga que vai procurar um advogado. Que você não era funcionária da empresa. Que precisa dos seus direitos”. Calculamos, aproximadamente, quanto isso significava. A soma a deixou feliz, já que daria para reformar a casa, que estava num estado bastante degradado.

No primeiro dia após aquela conversa, depois de muito se encorajar, Quitéria (nome fictício da zeladora) teve coragem de dizer ao genro de Conrado, que tomava conta da casa: “Meu pastor disse que eu tenho direitos”.

Acho que o homem ficou uma fera. E teve o desplante de me telefonar.

O celular tocou. Não reconheci o número. Atendi. Ele se identificou. Imediatamente se pôs a me questionar, indagando o porquê da minha orientação. Sugeriu que eu poderia ter algum interesse escuso.

Eu rebati prontamente. Ele insistiu. Mostrou-me toda a folha de serviços prestados por Conrado ao “Reino de Deus”. Perguntou se era justo fazer isso com um “obreiro tão valoroso”.

Eu me chateei. Claro. Tentei explicar ao nobre interlocutor, um engenheiro da Petrobras e professor da Escola Dominical de outra Igreja do bairro, que os direitos trabalhistas de Quitéria não tinham qualquer relação com a atuação do Conrado na Igreja.

Ele se enfureceu. Disse que era um desrespeito com o falecido. Que era uma mancha em sua memória. Que “Deus me perdoasse”.

Não. Não o mandei para lugar nenhum. Sabe quando você se arrepende de algo que deveria ter feito?

A ligação terminou.

Quitéria chegou domingo à Igreja feliz da vida. O tal genro havia proposto a ela um acordo. Era 20% menor do que o valor que calculamos. Mas ela estava satisfeita. Eu também.

O genro ficou realmente triste. Era, para ele, de fato, uma ofensa. O que daria sentido a esse pensamento?

Fico pensando: será que Conrado, ao dar a “Deus”, emprestava aos pobres?

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Se trepar, a Ceia não vai tomar!














Fui católico durante a minha infância em Valença, no interior do Estado. Nominal, ao menos. Fiz catecismo, primeira comunhão. Minha mãe me ensinou que eu jamais poderia comungar – receber a comunhão na missa – sem que antes me confessasse. Eu obedecia. Procurava o padre antes da missa. Ele me fazia perguntas básicas: masturbação, passar a mão em meninas, mentir e desobedecer. Ouvia as respostas. Indicava a penitência. Cumpri umas três ou quatro vezes...

Uma das mais terríveis e cruéis formas de dominação da Igreja sobre a vida de alguém é a repressão da sexualidade dos jovens e adolescentes.

E olha que eu nem estou falando de diversidade sexual, mas do padrão heteronormativo. Esse secularmente aceito, e bizarramente repelido nos arraiais evangélicos.

Como você sabe, fui evangélico durante dezesseis anos. Metade da minha vida. Quase toda a minha juventude. Falo do que vivi. Do medo. Do peso. Da dor. Da culpa.

Em nosso meio, os ritos, que não são vistos como sacramentos, são utilizados como forma de se estabelecer controle e distinção entre os “espirituais” e os “carnais”.

Por exemplo: o indivíduo, para ser batizado, precisa confessar publicamente que não bebe, não fuma, não serve aos “ídolos”, não joga no bicho. Se casado, tem que ser no papel. Se solteiro, e virgem, deve prometer guardar-se da prostituição. Se solteiro, mas já “iniciado”, deve confessar abstenção até o casamento.

Se reza essa cartilha, é batizado. A partir de então, pode participar da “Ceia do Senhor”, a versão protestante da Comunhão/Eucaristia.
No entanto, ainda assim, ou agora ainda mais, o controle e a fiscalização são fortíssimos. Se depois de batizado, o infeliz “cair em pecado”, o discurso oficial veda sua participação na Ceia, até que a “comunhão com Deus” seja restabelecida.

Em função disso, as pessoas que sinceramente querem “servir a Deus”, se excluem da participação.

Vão aos cultos. Cantam. Oram. Leem a Bíblia. Dão o dízimo. Mas não comungam do pão e do vinho.

Nos meus tempos de pastor, praticávamos na Igreja a chamada “Ceia Aberta”. Significa dizer que todos os que estivessem no culto, cristãos ou não, eram convidados a comer do pão e beber do vinho.

Ainda assim, algumas pessoas, membros da Igreja, deixavam de participar por se sentirem “em pecado”.

Certa vez, enquanto os diáconos distribuíam o pão e o vinho, percebi que um casal de jovens namorados não quis receber. Era mais que uma confissão de culpa. O que eles estavam fazendo de “errado”? Que tipo de sentimento nutriam em relação a si mesmos?

Chamei-os para conversar. Não acredito que tenham ficado preocupados com o teor da conversa. Éramos amigos.

Iniciei o bate-papo perguntando se estavam usando algum contraceptivo. Aquela pergunta os desarmou. Tentei encorajá-los a construir o amor, sem culpa. Disse com clareza: a Ceia é a celebração de um compromisso de vida. De comprometer a vida com a transformação do mundo, não temendo nem a morte. Se vocês estão nesse caminho, participem!

A partir daquele dia, a mesa estava, de novo, aberta para eles.

Claro que nem sempre agi assim. Errei e acertei. Sei que também reproduzi esse discurso baixo de culpa e controle. Mas acho que aprendi.

Sem amor, a Ceia, que deveria ser um momento de integração, união e comunhão, transforma-se em instrumento de opressão e dor. A Igreja, que deveria sinalizar a paz, promove a culpa.


Se é para radicalizar a leitura do texto bíblico, que se faça: Judas e o inconstante Pedro estavam presentes naquela hora da última Ceia. Jesus lhes deu lugar à mesa. Por que qualquer pessoa ficaria de fora?

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

"Jesus lavou o pênis dos discípulos?"













As leituras que fiz quando saí do Seminário me sacudiram a alma. Minha cartilha da salvação não respondia às perguntas trazidas pela realidade da minha comunidade.

Certa vez, lendo um romance do Theissen – “À sombra do galileu” – fui surpreendido por uma proposta ousada. Ele me encorajava a ver a “multiplicação dos pães” com outros olhos. A começar pelo título. Em nenhum momento o texto dos evangelhos fala em “multiplicação”. Jesus está cansado de caminhar com a multidão. Manda que se sentem. Toma em mãos a oferta de uma criança – 5 pães e dois peixes. Era normal para os padrões da época e do local, segundo a proposta, que os biscateiros, ao saírem de casa na madrugada, levassem um punhado de pão de cevada e um peixe seco dentro da capa. O desjejum era a principal refeição de quem iria enfrentar o desafio de conseguir um trampo ao longo do dia. Assim, ao ver a multidão cansada, com muitos famintos e miseráveis, Jesus decide ensinar a partilha. Pega em suas mãos a marmita do menino, dá graças e a reparte. Vendo tão nobre e corajoso gesto, as pessoas aderem, dividindo o que trouxeram. Dá e sobra para que todxs se alimentem.

Claro que propor essa leitura numa comunidade conservadora é tremendamente desafiador. Mas eu fiz. O texto me tocou e eu acreditei que poderia tocar outras pessoas também.

Ao fim da exposição, perguntei: “Qual seria o maior milagre: Jesus multiplicar o pão ou aprendermos a dividi-lo? Pedir a Deus a solução ou encontrar aquela que está em nossas mãos?”.

Vi gente indo embora antes da oração final.

Em 2009, fiz um curso do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), em Vitória-ES. Foi parte do meu processo de imersão no diálogo ecumênico, na leitura popular da Bíblia e numa exegese ‘libertadora”. Um mês de convivência, basicamente com católicxs da libertação de todo o Brasil. Meu único período de “férias” em quase oito anos de pastorado.

Lá conheci pessoalmente alguém que sigo admirando muito. Nancy Cardoso Pereira. Aquela mulher estudou conosco o Levítico. Inesquecível. Cantando Chico Buarque e muitxs outrxs, navegamos em múltiplas e diversas experiências.

É óbvio que minha crise com o modelo de igreja a que pertencia se acentuava. Era incompatível ganhar o bairro “para Cristo” e trabalhar pela emancipação das pessoas. Pela minha, sobretudo.
Num dado momento do curso, descobrimos que a palavra hebraica traduzida em nossas Bíblias como pé era uma espécie de eufemismo para “pênis”. Por isso Davi mandou Urias para casa, “lavar os pés”, quando este retornou do campo de batalha com sua esposa já grávida. Daí Rute se deitar aos pés de Boaz...

Tanto a Bate-Seba de Davi como a Rute de Boaz eram mulheres da genealogia de Jesus, segundo Mateus. Além delas, Raabe e Tamar. Todas mulheres com histórias e vivências sexuais distantes dos padrões malafaianos.

Voltei de Vitória enlouquecido. Num domingo de manhã, na hora em que deveria pregar, dividi a Igreja em quatro grupos. Cada grupo trabalhou a história de uma mulher: Tamar, Raabe, Rute e Bate-Seba. Os grupos se apresentaram e eu acrescentei os detalhes. Entre eles, o pé(nis).

A ideia era sacudir aquela fé desencarnada. Como eu estava sacudido. Temo que seja muito disso que vivemos: nosso ambiente de culto é “espiritual”. Mas a vida é vivida na carne mesmo. Talvez explique a divisão da vida. Dos dias. Dos hábitos. Das palavras. E toda a hipocrisia e a sequidão resultantes disso.

Quando os grupos terminaram, li a genealogia de Mateus. Somente aquelas “moças de família” são mencionadas na história. Ouvi o silêncio. Senti corações palpitarem. Como a Bíblia poderia registrar algo assim?

É incrível o choque que provoca em nós uma leitura do texto feita sem os óculos do fundamentalismo. Experimente ler a Bíblia sem buscar nela o “Plano de Salvação”, o céu, o inferno o ou o diabo. Você vai gostar. A Bíblia tem histórias muito loucas. Safadas. Vadias. Como a nossa vida mesmo...

Tem gente que reage nos corredores. Lá na Igreja tinha gente assim. Mas há gente que fala na hora.
Da turma que se levantou antes da oração final naquela proposta de leitura da “multiplicação”, uma senhora, professora da Escola Dominical, me indagou:

“Pastor, ainda bem que Cristo desfaz tudo isso. Por que se isso for verdade, então Jesus lavou o pênis dos discípulos?”

Era melhor que ela tivesse ido para casa, comer três putas. Quem tem olhos para ler, leia.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

"Pastor, vou para casa, comer uma puta!"














Jones (eu precisava achar um nome fictício que não tivesse xará na Igreja) adentrou o templo descalço. Vestia uma bermuda encardida e usava sua habitual camisa gola polo, que não conseguia esconder a circunferência abdominal. Do alto de seus quase 1,90m, com o sorriso de poucos dentes inteiros, cabelos brancos partidos ao meio, o olhar se agitava. Sentou-se no penúltimo banco, do lado esquerdo. A bermuda revelava quase metade do seu glúteo, arrancando risadas dxs adolescentes ao fundo.

Há algo de fantástico nas pequenas igrejas de comunidade: a sua enorme capacidade de acolher os loucos. Jones era mais um deles. Houve época em que eu queria pendurar uma placa no portão: “Não há mais vagas para loucos!”.

Terminado o culto, enquanto despedia as pessoas, aquela figura surgiu e me apertou a mão. “Pastor, que horas é a missa durante a semana?”. Informei o dia do Culto de Oração, quase como quem esperava que ele não viesse.

Quarta-feira. Jones foi o primeiro a chegar. Antes da noite. Entrou no salão de cultos, apagou todas as luzes, entrelaçou as mãos naquele simbólico gesto de oração e permaneceu em absoluto silêncio. Eu o vi ali, sozinho, compenetrado. De calça e chinelo. E resolvi deixá-lo curtir o momento. Essa cena se repetiu diversas vezes. Ele chegava cedinho e transformava o templo numa espécie de “Santíssimo”.
Começou a frequentar a EBD. Falava bem. Às vezes ria e falava alto. Às vezes, muito alto.  Não se contentava com as respostas simples. Disse estar “encostado pelo INSS” em função de problemas psiquiátricos. Aguardava a aposentadoria definitiva. Era bancário.

Jones conheceu a Igreja através de Clotilde (fictício, sem xará, lembra?!). Clotilde era uma espécie de maníaco-depressiva. Constantemente tinha crises histéricas. Mas era muito hábil no evangelismo. Com meia dúzia de folhetos, percorria os bares ao redor da Igreja e trazia gente. Falaremos sobre ela qualquer dia desses...

Solano (mais um fictício) tinha uns 45 anos. Cheirava cocaína há 30. Tinha perdido vários empregos. Precisava, como ele mesmo dizia, encontrar um jeito de não perder a segunda família.

Numa quarta chuvosa, estávamos no grupo de oração dos homens. Era tradição dividir o povo para orar tendo o gênero como critério. Jones e Solano estavam conosco. O grupo era bem idoso. Dois de 80. Um de 70. Outros de 50, 60... Jones tinha 53. E eu 20 e alguma coisa.

Solano contou um pouco da sua história. Chorou. Tinha uma filha adolescente. Era mais alto que Jones. Moreno. Magérrimo. Motorista. A sexta-feira era seu terror.

Essa era a hora de um bom bate papo. De abrir o coração e falar das necessidades, ou mesmo só agradecer. Jones pediu a palavra. “Pastor, eu quero pedir oração. Vou sair daqui, ir para casa, pegar R$ 50,00 com minha mãe e comer uma puta!”. Fez-se silêncio.

Eu não sabia o que dizer. Ele retomou: “Eu não sei o que acontece. É como uma droga!”. Repetia, enquanto arranhava o braço, alegando que o desejo estava em seu sangue. E estava mesmo. Como no de quase todos os homens ali. Mas ele, por ser ele, falava.

Todos me olhavam, aguardando que tirasse um coelho de minha cartola pastoral. Sem ter o que fazer ou dizer, mas me sentindo na obrigação de fazê-lo, pedi que todos ficassem de pé. Chamei Jones e Solano para o centro da roda. Impus as mãos em suas cabeças e fiz a oração mais escalafobética que consegui. Pronto. Seja o que Deus quiser.

Acho que Jones comeu a mulher. Solano talvez lute contra a dependência até hoje.

Acho que minha oração tinha uma intenção positiva. O grupo ali tinha. Queríamos, realmente, poder fazer algo por aqueles homens. Mas nossa leitura das causas e nossas ações eram ineficazes.

Jones frequentou a Igreja durante um tempo. Conversou comigo e me fez diversas confissões. Coisas que nem aqui posso falar e que irão em minha mente para o além. Se houver além.

Certa vez me interrompeu, em plena pregação, levantando a mão como um aluno que quer fazer uma pergunta. Com a Bíblia aberta num rei qualquer, indagou: “Pastor, me explica esse negócio de matar criança que está escrito aqui?”.

Seria melhor que tivesse dito que ia para casa comer duas putas...