Eu sempre curti a ideia de cuidar
das pessoas. Acho que desempenhei esse papel na família e, depois, na Igreja.
Particularmente, agradava-me muito a sensação de “poder fazer algo por alguém”
enquanto pastor. Os cristianismos produziram muitas mensagens. A que mais gosto
é a da solidariedade.
Quando assumi o pastorado, ainda
utilizávamos o antigo templo para os cultos. Estávamos construindo outro,
quatro vezes maior. Como a igreja arrecadava aproximadamente R$ 5 mil/mês, a
grana era curta para tocar a construção. O novo salão de cultos ficava no
segundo andar. Ainda faltavam o piso dos dois andares, os banheiros, o telhado
estava com muitos problemas, a fachada seria uma grande e custosa vidraça, não
tínhamos equipamento de som para dar conta do novo espaço.
Apesar de tudo isso, utilizar o
templo “novo” parecia um desafio interessante. Tratei de fazer uma campanha
para construirmos a rampa de acesso. A membresia era formada por muitos idosos
e um cadeirante. Ou fazíamos a rampa, ou ficávamos apertados no pequeno salão.
O verão de 2007 foi de muitas
chuvas. Um temporal derrubou o acesso da casa de uma das senhoras da Igreja. Esse
acesso era uma pequena escada velha de madeira, sem alguns degraus, que dava
num corredor que desabou, entre a porta da casa e os dutos da Petrobras. O
marido dela estava sem trabalho. Era alcoólatra. Ela tomava conta de crianças
para sustentar os 3 filhos adolescentes. Como manter esse trabalho tendo que escalar o
barranco para entrar em casa?
Claro que aquela situação me desafiou.
É claro, também, que aquele desafio exigiria dinheiro. Pois bem. Como se pode
pedir, de uma Igreja humilde, dinheiro para construir a rampa e dinheiro para
reformar aquela casa?
No domingo seguinte, depois de
ter visitado a família, juntei os abastados da Igreja, eram uns cinco, e narrei
com dramaticidade o ocorrido. Expliquei a situação e fiz, num chute, um orçamento
para a reforma da casa. Naquele mês, a campanha para a rampa seria
interrompida. Eles se comprometeram comigo a cooperar. Mas ainda faltava algo:
onde a família ficaria enquanto a reforma se desenrolasse? Tínhamos três salas
no subsolo do templo antigo. Dois banheiros. Uma cozinha. Decidimos que a
família ficaria hospedada lá.
Juntamos uma grana que não seria
suficiente. Contei com a boa vontade de muita gente. Um irmão me levou à
Baixada para comprar pisos. Pesquisamos e choramos muito na compra de outros
materiais, em diversos lugares diferentes. A ideia crescer, resolvemos fazer
naquele apertado corredor: um novo banheiro – o velho estava desabando – e a
cozinha. A escada de acesso seria de alvenaria, para o beco da favela, como a
maioria das outras casas. Assim, a antiga cozinha se transformaria num quarto.
E a casa teria dois.
Faltava apenas um detalhe: a mão
de obra. Igreja de morro, na maioria das vezes, têm pedreiros. A nossa tinha
alguns. Um deles topou fazer pelo preço que poderíamos pagar. O marido desempregado
seria o servente. Um dos diáconos, que não pôde cooperar com dinheiro, era
hábil armador de ferragens. Era um verão escaldante naquele descampado da
Petrobras, a única área possível para fazer massa e concreto.
Eu realmente acreditei que a parte
mais difícil estava vencida. Não tinha a menor ideia do que era o “sistema” de
água e esgoto da casa. Havia um segundo andar, que pertencia a outro morador,
cuja tubulação era dividida com a casa que reformávamos. Havia ainda uma fossa,
que ninguém sabia que era fossa até o pedreiro bater nela com a cavadeira e ver
o esgoto jorrar. Jorrar muito. Jorrar longe.
Refazer aquele corredor,
levantando um barranco, com tanta coisa enterrada, foi algo quase sobrenatural.
Até hoje não entendo como aquele pedreiro conseguiu. Refeito o corredor,
chegamos ao desafio do banheiro. Era preciso fazer uma pequena laje para a
caixa d’água. Depois veio a cozinha, a escada nova...
Ao longo desse tempo – quase um mês
– a família morou na Igreja. Você se lembra que ele era alcoólatra? E fumante!
O cheiro do cigarro chegava no templo. E eu sambava para dar conta de acalmar a
turma mais radical, que via como um absurdo o indivíduo fumar na Igreja.
Pensa que acabou? Um dos filhos
da senhora se encantou com o gazofilácio (aquela caixa, normalmente de madeira,
onde o povo deposita as ofertas e dízimos). Os tesoureiros recolhiam o dízimo
apenas no domingo à noite. As ofertas da manhã passavam o dia inteiro lá.
Percebendo isso, o garoto arranjou uma pinça e, virando o gazofilácio,
arrecadava seu próprio dízimo. Demorou até percebermos, pois havia gente na
Igreja que depositava o envelope vazio mesmo. Vai saber porquê...
Numa tarde de domingo, o diácono
que ajudava na armação das ferragens – um dos tesoureiros – abriu a porta do
templo e ouviu uma correria. Gazofilácio tombado. Pinça no chão. O garoto estava
escondido atrás da grande mesa de madeira em que celebrávamos a Ceia.
Assustado, disse que havia um mascarado roubando a Igreja, e que tinha sido
ameaçado se contasse.
Aquela história era demais para
mim. Fiquei tão irritado que decidi pressionar o garoto. Chamei-o para
conversar. Ele contou a mesma versão do mascarado. Fiquei ainda mais chateado.
Disse que iria chamar a polícia. Tentei pressioná-lo.
Bom. O pai dele ficou mais
enfurecido que eu. Depois de beber algumas, chegou à Igreja com um facão. Aos
berros, ameaçava me matar. Como eu poderia ter acusado o filho dele?
O pedreiro e o diácono, que
estavam trabalhando na casa dele, mais íntimos, portanto, o demoveram da ideia
do esfaqueamento. Ufa...
Concluímos a obra. A família
voltou para casa. Satisfeitos e agradecidos (ou não?). O caso do gazofilácio
ficou por isso mesmo... A rampa ainda demoraria algum tempo para sair. Aquele
verão se foi.