quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Como vivenciei negritude na Igreja















Uma boa parcela da Igreja era de negros.

Gente que veio de longe. De outras cidades. De outros estados.

Gente que trabalhou demais comigo. Com quem compartilhei lágrimas e sorrisos. Que abriu as portas de casa para mim. Irmãos.

Sempre gostei de ouvir suas histórias. De conhecer um pouco de suas vidas, da trajetória  pessoal.

Um diácono, fundador da Igreja, meu braço direito, que já passava dos sessenta anos, tinha uma doença rara no pulmão. Consequência de anos lavando navios com jato de areia. O médico tinha lhe dado meses de vida quando descobriu. Ele foi aposentado por invalidez, e agora ‘trabalhava para o Senhor’. E como trabalhava. Desde o diagnóstico, passaram-se dez anos. E ele estava lá. Com algumas restrições, mas feliz. Fazendo de tudo.

Donato viera de São Fidélis, norte fluminense, na década de 60, morar com parentes, numa favela do Rio. Fez bico de servente de pedreiro. Na casa de uma ‘patroa’, precisou ‘aliviar o ventre’. Alguém lhe indicou o banheiro. Ele entrou e, rapidamente, saiu. E saiu reclamando que a louça estava limpa. E, com a louça limpa, não poderia defecar ali, pois sujaria tudo. Então, uma boa alma resolveu apresentar o banheiro e o vaso sanitário para Donato. Corriam os anos 70 e eles não se conheciam.

Donato se casou com Rose. Viviam de aluguel, num terreno no morro. Quando se converteram, Rose recebeu a proposta de ser zeladora da Igreja. O terreno da Igreja era grande. Foi construída uma pequena casa, e eles passaram a viver ali. Ficariam naquela casa por mais de duas décadas.

Rose é do Espírito Santo. Nasceu numa fazenda em que seu pai trabalhava e vivia. Ouvi uma história de sua infância que nunca mais vou esquecer. Seu pai plantava e colhia para o patrão. Era o patrão quem escolhia, da colheita, o que ficaria para a família de Rose. Boa parte ia para a Casa Grande, como ainda chamavam, e outra para ser vendida no centro da cidade. O que sobrasse, ficava com a família.

Numa manhã de muito trabalho, o pai de Rose caiu do carro de boi. Bateu com a cabeça. Ficou sem poder trabalhar por um bom tempo. O dono das terras foi ‘visitar’ o doente. “Francisco, onde estão seus filhos?”. Eram cinco. Três mulheres e dois homens. “Estão na escola, patrão”. O patrão gargalhou e respondeu: “Pois trate de colocar a negrada na lavoura, se você não pode trabalhar, eles têm que dar conta!”. Rose e seus irmãos só voltaram a estudar na idade adulta.

...

Essas histórias foram contadas num pequeno grupo de estudos. O tema era “O Bom Samaritano”. Não sei por que cargas d’água entramos a discutir questões de negritude. No grupo, estava uma mulher, negra, contrária à política de cotas. Ela dizia que os negros não eram inferiores para precisar disso.


Depois da história de Donato e Rose, ninguém precisou argumentar mais nada. Foi ali, naquele chão sagrado da vida, num rincão perdido do Rio, que os olhos se abriram. 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Pastores e bilhetes debaixo da mesa











Nós, humanos, somos um monumento ao desequilíbrio, à dualidade, aos paradoxos. Amor e ódio. Apego e desapego. Indiferença e preocupação. Fé e incredulidade.

A espiritualidade típica das igrejas de cunho puritano-pietista-evangelical tenta negar esses antagonismos, dando à vida um equilíbrio matemático. O sistema de crenças parece perfeito. Parece responder a tudo. Parece manter a viagem tranquila. Mas, quando a realidade nos faz questionar, o castelo de areia desaba.

Corria o ano de 2009. Por ironia do destino, presidi uma comissão que cuidou de um trabalho evangelístico autodenominado ‘Cruzadas’. Eu sei que não poderia haver nome pior. Uma organização do sul dos Estados Unidos, que recruta voluntários para uma semana de ‘impacto evangelístico’, com associações de Igrejas. Eu presidi o grupo de oito igrejas, do nosso bairro, que aderiram. Receberíamos gente de todo o Brasil e, sobretudo, bolivianos.

Quem acompanha este blog, sabe que o pastor da maior igreja do bairro havia ‘profetizado’ a transformação da igreja que eu pastoreava em cabaré. A comissão da Cruzada decidiu solicitar o templo daquela igreja, grande e com estrutura, para o culto de abertura da semana evangelística.

Essa brincadeira levou um ano de preparação. Diversas reuniões. Uma em Resende. Um retiro em Areal. Em nenhum desses eventos aquele pastor estava. Nem nas diversas reuniões que aconteceram na igreja dele, onde a Associação tinha sua sede.

Noite do culto de abertura. Lá vou eu para o púlpito daquela igreja. Comigo, a secretária nacional de Cruzadas e diversos membros da comissão local. Entre eles, um pastor que havia sido membro daquela igreja. Saíra de lá brigado com o pastor-profetizador-do-cabaré. Ele era o membro da equipe responsável pela música e regeria os hinos durante o culto. Regeu o primeiro e se sentou na primeira fila.

Alguns minutos depois de iniciado o culto, o pastor-profetizador-do-cabaré me enviou um bilhete. Um pequeno pedaço de papel, escrito por um terceiro, que dizia: “O pastor Joe manda avisar que o Jaspion (ele não chamou o desafeto de ‘pastor’) está proibido de subir ao púlpito dessa igreja”. Tentei avistar o pastor Joe, mas ele não estava no templo.

Um mal estar tomou conta de mim instantaneamente. Fiquei sufocado pela responsabilidade de continuar dirigindo o culto, ainda com a incumbência de tomar uma atitude em relação ao pastor Jaspion. Ele estava do meu lado e notou meu desconforto. Ficou desconfiado. Decidi lhe mostrar o bilhete e ele resolveu permanecer sentado, não regendo os outros hinos.

Para mim, a semana de evangelismo acabava ali. Como seria possível organizar e mobilizar tanta gente para, por fim, termos crentes capazes de produzir desafetos e de lhe negarem acesso ao púlpito. Não sabia, não quis saber e continuo não sabendo o que aconteceu entre aqueles dois no passado. Quem tinha razão na briga ou não. Aquela noite representava um desejo de mudança, de ver um novo tempo no bairro. Foi o tempo, na verdade, de eu descobrir que isso não existe.

Falar do amor de Deus, domingo após domingo, durante anos. Liderar uma grande igreja. Pregar em diversos lugares. Viajar o mundo. Conhecer gente. E continuar capaz de profetizar o cabaré. Continuar capaz de mandar bilhete para tirar desafeto do púlpito. Castelos de areia.

Nenhum de nós, certamente, está acima do bem e do mal, ou é incapaz de, vez por outra, cometer ou reproduzir injustiças. Isso, no entanto, não faz parte do óbvio na vida de um pastor tradicional. Ele é visto – e muitas vezes se coloca – num lugar de excelência. De santidade. De exclusividade. De ‘unção especial’. De ‘Vox Dei’. E assim, como se não fosse nada, manipula o que se pode ver de si.

Meu maior medo sempre foi o de, ao me valer da minha posição de pastor, usar a Bíblia para atacar alguém, fazer críticas pessoais, abusar do ‘poder’. Sei que, eventualmente, até sem querer, acabei fazendo isso. Mas posso me orgulhar de nunca ter feito de forma pensada, planejada, orquestrada, desejada. Levantar a mão contra alguém, fazendo uso de privilégios, de relações, de bilhetes debaixo da mesa. Graças a Deus.

Em 2009, eu tinha 27 anos. Tentava, desesperadamente, encontrar um modelo de igreja/pastorado que se adequasse à realidade da minha comunidade e que fosse, obviamente, compatível com as minhas constantes mudanças de visão. Tentei. Muito. Só Deus sabe o quanto. Lutei, muitas vezes de forma solitária, errando e acertando. Até que, movido por um complexo conjunto de fatores, resolvi desistir daquele ambiente. Daquela caminhada. Escolhi/fiz/faço/farei outros caminhos.

Sei que muitos bilhetes ainda correm debaixo das mesas. Quanto maior a Igreja, maiores as chances de disputa de poder, de falência ética, de degradação. Penso que assim também acontece em diversas organizações. Mas o ‘orgulho’ do fundamentalismo é, justamente, julgar-se o melhor, superior, único, divino. Tão mortal como qualquer outro.

Fico pensando na profecia do pastor. Ela não se cumpriu. Pelo menos, não lá na nossa pequena Igreja. Ainda assim, tenho a ligeira desconfiança de que um cabaré receberia Joe e Jaspion de braços e pernas abertas.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Deus, o projeto e as pulgas














Acho que foi em 2008. Não sei ao certo. Começamos na Igreja um projeto que visava criar um segundo turno escolar para crianças e adolescentes. As igrejas possuem uma estrutura física mal aproveitada. Espaços que permanecem fechados ao longo de quase toda a semana. A ideia era usar isso. E, claro, gente.

Juntamos uma galera. Conversamos. A turma topou. Muito por conta da minha empolgação, acreditando em mais uma ideia para ‘salvar o mundo’. A Igreja acreditou em várias. Em algumas, mais do que eu. Ainda que existisse uma distância entre o que eu propunha e a maneira como a liderança enxergava a ideia, não posso reclamar de falta de apoio.

Tínhamos um orçamento muito limitado. Algo em torno de seis mil reais. Um terço dele pagava meu salário como pastor. Decidimos dedicar outro terço do orçamento para o projeto e o restante, o outro terço, pagaria as demais despesas da Igreja. Era andar na corda bamba.

Fizemos uma campanha de divulgação na comunidade. Iniciamos no segundo semestre. Houve mais de sessenta inscrições. Recebemos a todos. Gratuitamente.

Fomos até o Mercadão de Madureira comprar material escolar. Compramos aos montes. Coisa boa...

O corpo de voluntários era limitado. Eu me desdobrava para coordenar e cuidar da turma de adolescentes. Compramos uma mesa de totó usada. Recebíamos doações para o café da manhã e o lanche da tarde. E lutávamos muito para manter a turma sob algum controle durante as sete horas que passavam conosco. Uma turma de 8h00 às 11h30. Outra de 13h30 às 17h00.

A turma fazia o dever de casa. Montamos uma pequena biblioteca com livros doados. Criávamos outros exercícios e buscávamos caminhos para complementar as falhas do sistema público de educação. Segundas, quartas e sextas cantávamos os hinos. Nacional, Independência, República e Bandeira. Era a hora dos voluntários mais antigos sentirem-se saudosos dos seus tempos de escola. Eu, inclusive. Tentamos, com os adolescentes, trabalhar o significado das palavras ‘desconhecidas’ dos hinos. Tentamos...

Havia meninos e meninas no quarto ano que não sabiam ler. Havia um menino negro que levava o mesmo caderno para a escola e para o projeto. Em branco. Completamente. No fim do ano.

Foi um semestre intenso. Voluntários se desdobrando. Eu me sentindo completamente esgotado. Mas muito empolgado. Procurando formas e parcerias para aquele trabalho.

As salas de aula do novo templo ainda estavam em obras. Não havia mesas e cadeiras adequadas. A iluminação era precária. Mas as crianças não deixavam de ir... De alguma forma, a comunidade confiava na gente.

O preço mais alto que pessoalmente paguei foi o de tentar dar um caráter laico para o projeto. Não evangelizaríamos ninguém. Não era trabalho de catequese. Nenhuma criança ou seus pais eram obrigados a frequentar a Igreja para participar do projeto. O máximo que fizemos foi uma Ceia de Natal. O coro das crianças do projeto cantou uma das músicas da Cantata. Tiramos todos os bancos da Igreja. Alugamos mesas e cadeiras. Fizemos uma grande ceia com as famílias das crianças do projeto. Lembro-me disso com muito carinho.

Aquele foi também um ano eleitoral. Ano difícil. O assessor de um candidato a vereador me abordou numa tarde. Quis saber sobre o projeto. Sobre a personalidade jurídica. Falou e falou. Por fim, disse que se eu conseguisse um CNPJ de OSCIP poderia destinar uma emenda de um parlamentar de Brasília para o projeto. “Algo em torno de um milhão por ano”, disse ele. Não fiz um pedido sequer. Ele pediu uma ‘oração’. Orei por ele e sua família. Nunca mais o vi. Graças a Deus.

Fiz propaganda do projeto nas igrejas da minha denominação no bairro. Certamente alguns aposentados, ou gente com mais tempo, poderia nos apoiar. De um universo de treze igrejas, duas pessoas vieram ajudar. Nenhuma igreja se dispôs financeiramente. Era preciso acreditar muito.

O inusitado, então, veio nos visitar. Estava na mesa de totó com a turma de adolescentes. A bolinha caiu longe, no fundo do corredor do templo, ainda em obras. Lá, na última sala, havia um sofá velho, onde dormia um gato ‘invasor’. Ninguém sabia, mas a sala estava repleta de pulgas. O menino que foi buscar a bolinha saiu da sala carregando dezenas. E ensinou o caminho para milhares.

Em poucos dias, todo o primeiro andar do novo templo estava inundado de pulgas. O projeto foi suspenso por quase um mês. Tentamos de tudo: veneno, oração, dedetização amadora e profissional. Por fim, com muita perseverança e K-Othrine, conseguimos vencer.

 O pior de tudo foi ouvir, de membros de outras Igrejas: ‘Pastor, acho que isso é espiritual’.

...

O que pensar diante de tal declaração? Gente com ensino superior, de igreja grande, repetindo a cantilena e me olhando como se tivessem uma ótima explicação para o fenômeno, surpresos com minha indiferença.

As pulgas não venceram o projeto. Não me desanimaram. Não desanimaram o povo da Igreja.

A falta de apoio de gente ‘graúda’, endinheirada e instruída, sim.

Num daqueles anos fui pregar na maior Igreja do bairro, que havia organizado nossa Igreja há quase trinta anos. Era de lá o pastor que profetizou que nossa igreja se tornaria um cabaré. Eram de lá os que defendiam a tese das ‘pulgas espirituais’. Num dado momento da pregação, desabafei: ‘Vocês têm até elevador. Lá em cima no morro, estamos sem banheiro’.


Depois disso, naquela Igreja, não me chamavam nem para fazer oração silenciosa.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Deus no presídio!













Eu nunca tinha posto os pés numa unidade prisional. Até hoje, não pus novamente.

Minha experiência religiosa no “Galpão da Quinta” foi terrível. Fui até lá, conhecer a capelania prisional desenvolvida por um missionário da denominação a que pertencia. Não tinha a menor ideia do que iria encontrar. Nem das pessoas. Nem do ambiente. Nem do “trabalho religioso”.

Atravessei a Quinta da Boa Vista e dei de cara com uma rua estreita. Uma multidão se espremia na fila. Oito da manhã. Dia de sol. Muito calor.

A multidão era de familiares dos presos. Gente que veio visitar os internos. Gente que veio se cadastrar para fazer as visitas.

A fachada do presídio me assustou. Por que um versículo como aquele? Que mensagem o “sistema” desejava transmitir?

Na “recepção”, uma pessoa ‘simpática’ me credenciou para entrar. Fui revistado. Entrei só com a Bíblia. Passei por uma salinha apertada, cheia de armas, com um quadro negro na parede, onde se registrava a contagem dos presos.

Segui para um enorme corredor. O presídio Evaristo de Moraes é horrível. Quente. Insalubre.

No meio do corredor havia uma pequena vala que circundava todo o galpão. Para ali afluía, imagino, parte do esgoto. O piso era desnivelado para que todo líquido caísse na vala. O fedor era insuportável. Ratos e baratas circulando.

Uma parede imensa do lado esquerdo. Do lado direito, as ‘celas’. Grandes (in)cômodos onde se amontoavam pessoas. Prisioneiros. A maioria absoluta de negros. Velhos. Jovens. Travestis. Espremiam-se na grade, como se esperassem receber alguma coisa de quem passava. Era visível que o presídio operava muito acima da (in)capacidade.

A pintura era antiga. As celas escuras. Muito lixo acumulado. Cheiro de chorume misturado ao esgoto.

“O culto é na outra ala do presídio. A ala dos evangélicos”, tranquilizava-me o missionário.

Atravessei um portão e a sensação que tive foi a de sair do caos para, digamos, um pouco de ‘organização’. Apesar de igualmente trancafiada e cheia, a “Ala dos Evangélicos” era diferente. As paredes eram brancas. As celas organizadas. Ventiladores. Rádios. Quase silêncio. As portas se abriram, numa visão quase apocalíptica. As filas se formaram. Era hora do culto.

Caminhamos para um grande salão. Era o ‘templo’. Aparelhagem de som melhor do que na minha igreja. Palco. Púlpito. Instrumentos. Tudo pintado com muito cuidado. A imagem de um horizonte atrás do batistério.

Logo adiante, uma salinha. Atrás das cortinas. Conheci o pastor da ‘igreja do presídio’, que tinha, segundo ele, naqueles dias, uns 450 membros. Ali se reuniam os responsáveis pelo culto. Conversavam sobre a liturgia. O pregador daquela manhã era um pastor da minha denominação, de uma pequena igreja da Zona Sul.

Antes do culto, um pequeno lanche. Ofereceram-me um biscoito de nata: “É feito aqui mesmo”. Relutante, – em que condições teria sido feito aquele biscoito? – aceitei. Comi só um. É bom não abusar da proteção que Deus dá para os ‘homens sagrados que pregam nos presídios’.

Começa o culto. Como pastor, fui chamado para me sentar numa das cadeiras atrás do púlpito.

O dirigente, o pastor do presídio, preso por homicídio, faz a abertura. Anuncia os convidados. Começa a música. Estridente como nas igrejas. Som muito alto. Gente chorando. Todos cantando com muita energia. Vários com as mãos na cabeça. Refrões repetidos como mantras. Uma. Duas. Dez vezes. Muito choro!

Eu, que quase não sou ansioso, comecei a ficar angustiado. Estava literalmente preso num culto pra lá de carismático, com gente gritando muito, o som alto, e o ambiente hermeticamente fechado. Quente. Com cheiro de mofo.

Acabou a música. O pastor da zona sul começou a falar. Escolheu um texto de Josué. “Sê forte e corajoso”. Ele repetia frases de efeito. E pedia que os ouvintes o fizessem. Eles gritavam a uma voz. Impressionante! Pareciam ensaiados. Pareciam uma só pessoa.

A pregação de desenrolou assim... Era como se o pregador controlasse a multidão. E a multidão empolgava o pregador. Uma liga sinistra. Ensaiada. Impactante. Eu estava à beira de uma crise nervosa.

Quando o pregador parecia caminhar para o fim, alguém atravessou o salão com um balde plástico na mão. Dentro do balde, pequenos papéis com nomes. Não era uma brincadeira de “Amigo Oculto”. Eram os nomes dos que seriam libertos naquele dia. Fiquei sem entender direito. Não tive coragem, ou condições, de perguntar.

A cada nome chamado, mais choro. O “liberto” ia à frente, ficava ao lado do pastor. Umas seis pessoas ao todo. Depois, outros foram encorajados a ir à frente: consagrar suas vidas, se entregar para Jesus ou mesmo fazer um pedido específico de oração.

Adivinhe quem foi chamado para fazer a oração? Quase congelei. Sair daquela cadeira foi um suplício. Ouvi a minha voz no microfone e me perguntei: ‘O que estou fazendo?’. Tentei embarcar no clima da festa. Mas estava nitidamente ‘fora de contexto’.

Terminada ‘minha parte’, o pastor interno agradeceu a presença dos visitantes. Disse que voltaríamos outras vezes. Fez a oração final, naquele clima. Encerrou o culto.

Era uma terça-feira. Dia da minha denominação escalar o pregador do culto. Quarta era a Universal. Quinta, Assembleia. Sexta, Deus é Amor.

Conversamos ainda um pouco. Tentei compreender melhor tudo aquilo. O pastor me explicou como funcionavam as coisas. Para um interno migrar para a Ala dos Evangélicos, a igreja do presídio deveria declarar que o recebia. Seguia-se uma sabatina e o candidato assinava um termo de concordância com as regras da Ala, que incluía, entre outras coisas: oração a cada três horas – inclusive durante a madrugada, roupas comportadas, sem palavrões, sem televisão, visita íntima só para casados no papel, comportamento quase impecável. Havia ali uma travesti, com seios de silicone que fazia questão de esconder. “Será um novo homem quando sair da cadeia e puder retirar os seios”, repetia o pastor. Dividiam itens básicos – sabonete, barbeadores, comida, roupas de cama. Revezavam-se na faxina. O ambiente era, de fato, muito mais conservado do que as outras alas.

Permaneci no salão de cultos, enquanto os internos voltavam às celas para a contagem. Quando os agentes terminaram, fomos acompanhados para a saída. Passei pela capela católica. “Do mesmo tamanho do nosso templo, mas quase sempre vazia”, disse o pastor. Era hora também da entrega das quentinhas para o almoço. Carrinhos de supermercado desfilando sobre a vala do esgoto, carregando as quentinhas. Muitas mãos atravessando a grade para receber a comida.

Vi, ainda de longe, a luz do sol. Senti-me aliviado.

Ao me deixar na Radial Oeste, onde eu pegaria um ônibus para o Centro e, de lá outro para casa, o missionário me disse: “Deixei seu nome no livro para retornar na próxima semana”. “Vamos conversar”, respondi.


A conversa nunca se deu. Fugi do presídio. Acho que a verdade me libertou.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

As tragédias explodem as certezas













Era fim de outubro, acho que de 2010... Tempo de um fim de semana especial da música na Igreja. A programação previa fóruns, debates, orquestra... Até que o inesperado lançou toda a nossa previsão para o espaço.

O telefone de alguém tocou. Estávamos no templo, com a turma toda da música, assistindo a um filme que nos proporcionaria a chance de discutir os embates de formalismo e informalismo, antigo e novo, pode e não-pode. Do outro lado da linha, a notícia: Tito morreu.

Tito era membro da Igreja. Tinha 22 anos. Neto de uma família bastante numerosa e ativa na comunidade. Trabalhava no transporte alternativo que fazia a travessia da favela mais armada do bairro. Uma das mais armadas do Rio.

Trabalhando na “Kombi”, Tito fez amigos no meio da “rapaziada do movimento”. Era bonito, forte, fazia sucesso com as meninas.

Aquela favela tinha uma UPP diferente – a Unidade de Propina Pacificadora. Dizia-se que toda semana a “patamo do comandante” buscava o “arrego”.

Num desses dias, Tito desfilava em seu carro, comprado com dinheiro do trabalho, na companhia de seus amigos: a rapaziada. Armados, andavam pelas ruas da favela. Num dia de azar, “bateram de frente” com a “patamo”. O esquema era todo mundo fingir que não viu, dar ré e seguir caminho. Mas...

O tiroteio começou sem que alguém seja capaz de dizer de onde. Tito, que não era “do movimento”, foi atingido. Dentro do carro. Só ele. Tiro de fuzil normalmente mata. Tito morreu.

Cheguei à clínica para onde foi levado seu corpo. Sua mãe, minha amiga de longa data, acariciava os pés frios, do corpo ensacado em cima de uma mesa de mármore. À porta daquela sala sinistra, duas adolescentes pranteavam. A mãe, missionária de uma denominação pentecostal, se questionava. Alternava entre o desespero do “ressuscita meu filho, Senhor” e a resignação.

Fui com o padrasto do falecido até a delegacia. Na garupa de sua moto. Sem capacete. Ao descermos, os PM’s nos abordaram. “Você sabe que ele era bandido, né?”. Na patamo, algumas marcas de tiros. Nenhum nos vidros.

Entramos na delegacia. O padrasto perguntou pelo carro. Estava financiado no nome da tia de Tito. O responsável mandou chamar os PM’s envolvidos na ocorrência. Deu-lhes uma bronca: “Era só um tiroteio. Agora tem carro e corpo. Que merda é essa?”. Silêncio. Entraram todos. Quando saíram, um dos “azuis” disse ao padrasto: “O carro está lá em cima. Busque lá e traga para ser periciado. Nós não vamos subir por que o clima não está bom”. Com meus botões, me perguntava: que situação é essa?

Fui na garupa da moto para a casa dos avós de Tito. O carro estava lá na porta. O para-brisas completamente perfurado. O chão ensanguentado. A mãe dele olhando para o carro. Seu corpo já estava no IML.

Fiquei com a família até a madrugada. Mais tarde, alguém me deixou em casa.

Foi-se o sábado.

Veio o domingo. Dia do sepultamento. Corpo na capela do cemitério. Nunca vi aquele cemitério tão lotado. Muitos jovens. Camisas com a foto de Tito. Tentei falar alguma coisa, mas chorava mais do que eles. Difícil. Subi numa pedra e de lá li o Salmo 23. Falei, acredito, ao vento. A comoção era generalizada.

Fizemos o sepultamento. Cancelamos o culto da manhã na Igreja. Estávamos quase todos ali. O culto da noite foi difícil. Falei pouco. Li o trecho em que Jesus diz: “Filhas de Jerusalém, não chorem por mim; chorem por vocês mesmas e por seus filhos! Pois chegará a hora em que vocês dirão: ‘Felizes as estéreis, os ventres que nunca geraram e os seios que nunca amamentaram!”.

A morte de Tito me deixou muito abalado. Fiz muitos funerais ao longo dos meus anos de pastorado. Mas aquele, com todos os seus ingredientes, com os jovens repetindo o refrão da música gospel preferida do falecido, com o frenesi, os gritos... Cenas que nunca sairão da minha cabeça. Pronto. Já estou ouvindo a música de novo!

Sábado passado voltei à Igreja. Uma jovem de 22 anos, que vi criança, morreu. Uma doença trágica ceifou sua vida em três meses. Abracei seu pai, que trabalhou comigo na igreja por anos, e chorei com ele. Não precisava falar nada. Não sou mais o pastor da Igreja...

Tito estava no lugar errado. Na hora errada. Em “más companhias”. Sua morte, portanto, “se explica”. A jovem de sábado não. Igreja-casa-faculdade... “Por que, Senhor?”, perguntava a avó. Ela me abraçou e disse: “Deus abandonou a gente, pastor”.

Uma das piores falácias do fundamentalismo é a pretensão de explicar a mente de Deus. A ideia matemática de que “tudo tem um propósito”. “Deus tem o controle de tudo”. “Por mais que eu não saiba, Ele tem o melhor”. “Ele a recolheu para si, evitou algo pior”. Ora. Convenhamos. Que merdas de explicações são essas?

Que explicação pode existir para uma tragédia assim? O que pode ser dito para um pai que enterra uma filha vitima de câncer? Na minha humilde opinião: o melhor é não dizer nada. Por mais que a comunidade, para manter a aparente coerência de sua pregação, peça uma resposta, o silêncio humilde e reverente diante do mistério absoluto da vida me parece a melhor saída. Chorar junto. Retomar a caminhada. Permitir que o amor fraterno ajude a curar as feridas. Não há muito o que se fazer.

Fiz o sepultamento de uma criança de dois anos. Ela caiu da escada e bateu a cabeça. A família não era “crente”. Fiz o sepultamento de um jovem de 27 anos. Caiu do “escadão do morro” e quebrou uma vértebra. Deixou um casal de filhos (7 e 4 anos). Seu pai morreu uma semana depois, vitima de um AVC. Sim... Fiz sepultamentos “comuns” também. Gente idosa, com “doença de gente idosa”.

A morte, talvez, seja a “etapa” mais difícil de superarmos. É aquela que nos traz à tona o quanto somos frágeis, pequenos, efêmeros, mesmo diante do nosso mundo de certezas.

Seja sincero. Por mais que se creia na “vida eterna”, que lá “em cima” existam ruas de ouro, que seja o lugar onde o choro cessa... Quem, nesse mundo de Deus, quer morrer?

Será que cremos mesmo? Não precisa responder. Acho que você não tem certeza.

Ou tem.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Há um "lado bom" na Igreja?














Alguém poderia me indagar sobre o “lado bom” da Igreja. Será que eu não o vejo?

Ora. Claro que vejo. Muito do que vivi na Igreja vai me acompanhar para sempre. É algo que me compõe.

Vivi ali muitas e diferentes emoções. Aprendi sobre Deus. Não o Deus da Doutrina, do testemunho, da catequese. Mas o Deus que não cabe nas linhas. Nas letras. É apenas captado pela emoção. Está em nós, apesar de nós. É aquilo que nos move adiante. Que nos completa e ultrapassa. Que nos segura, agita, incomoda, teima, age, reage, indigna. É a ternura, o afeto, o perdão, a reconciliação, o colo, o abraço, o beijo, o amor, o começo, o fim e o meio...

Como vi e vivi isso na Igreja!

Vi, apesar das dificuldades, vida comunitária. Tínhamos uma cisterna na Igreja. Todo verão era a mesma coisa: “Pastor, podemos pegar água na Igreja?”

Vi gente se ajudando para pagar enterro. Vi o templo antigo ser usado como capela mortuária. Vi senhoras da Igreja preparando café, bolo e biscoito para quem ia virar a noite no velório. Vi uma casa ser construída num terreno para uma moradora de rua com seus dois filhos. Vi vaquinha pra óculos. Vi cesta básica. Vi catadora de lata com alegria de “entregar sua oferta”. Vi crianças jogando bola. Vi crianças me abraçando. Vi velhinhos contando piadas. Vi gente em leito de hospital público, a quem fui visitar, me mostrando o que é coragem. Vi gente acreditando na cura. No milagre. No impossível. Até à última hora. Vi mulher dizendo “não” para o marido. Vi alcoólatra erguer a cabeça. Vi a fé na vida eterna. Vi solidariedade sem fim. Vi gente abrindo a porta de casa. Vi gente me emprestando o banheiro quando não tive água. Vi gente mais velha me chamando de senhor. Vi pobre ajudando rico. Vi adultos aprendendo a ler. Vi um pobre, negro, homossexual, HIV positivo, cadeirante deixar de ser analfabeto, ser acolhido como igual. Vi a força da Vida em ação.

Vi gente acreditar num garoto franzino e o ordenar pastor.

Vi gente me mandando um SMS ontem:

“Boa tarde, pastor! Depois que o senhor saiu da Ilha ficou metido. Não quer saber dos pobres. Desculpe-me por não ter ido à festa da Bia. Não deu mesmo. Pastor, hoje eu fiquei muito emocionada. Cantamos na Igreja uma música que o senhor cantava quando fazíamos o culto aqui em casa. Era tão bom. A gente morria de vergonha da casa, mas quando começava o culto a gente até esquecia. Me vieram tantas lembranças suas. O senhor foi muito importante para nós. Obrigada, por que se não fossem os cultos, nossa casa estaria um caco até hoje. Um abraço. Beijos da nossa família para o senhor e sua esposa. Deus proteja sua família. Amém.”

Hoje o texto é curto. A emoção é grande demais.

Hoje completo um ano distante do ministério pastoral. Envolvido por minhas reminiscências. Tentando entender o sentido de tudo isso.

Perguntando-me: para onde vou?

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Um especialista em demônios!










Eu tinha medo de histórias com possessos.

Na verdade, não acreditava que teria “poder espiritual” para expulsar um demônio.

Assim, sempre que surgia a “oportunidade” de um encontro como esses, chamava um casal de diáconos, amigos de longa data, e os “deixava” ir em meu lugar.

Certa vez, ainda nos meus tempos de seminarista, fui chamado às pressas para a casa de uma adolescente da Igreja. Ela estava quebrando tudo no quarto e, antes que o pai chegasse para tirar o demônio usando o cinto, a mãe pediu que eu fizesse alguma coisa.

Fiz uma oração mequetrefe e parti para o embate. Se algo desse errado, ao menos estaríamos apenas eu, a mãe, a possuída e o possuidor...  Não tinha muita gente para dar Ibope.

Cheguei a casa. Fui direto para o quarto da menina. Tava tudo uma zona mesmo. Ela se sentou no canto da cama e não me olhava. Eu pensei com meus botões: “Isso mesmo, capiroto. Fica aí no cantinho e nem me olha”. Chamei-a pelo nome. Ela se recusou a me olhar. Disse que em mim havia “luz” e que, portanto, era impossível me encarar. Fiquei ainda mais encorajado. Nunca tinha vivenciado algo assim. Não vivi de novo depois. Sem saber o que fazer: se tocava nela, se falava as palavras tradicionais ou se gritava, fiz apenas uma oração branda, calma e leve. Ao fim, ela estava mais serena. Não disse mais nada. Levantei-me e fui embora.

Convivi com aquela adolescente durante anos. Nunca comentei nada sobre aquele dia. Nem ela. Nem sua mãe.

Clotilde era um caso especial. Ela era habilidosa evangelista. Há anos lutava contra problemas psiquiátricos atribuídos à ação do tinhoso. Ela atribuía. A maioria das pessoas da Igreja também.
Era um tal de passar mal no fim do culto. Correria pra porta do templo, onde costumava ficar. Um monte de gente em cima. E ela, aflita, gritando que o diabo a estava levando. Um sofrimento que me angustiava.

A angústia era ainda maior por que eu, o pastor, deveria ter uma resposta. Uma solução. Deveria fazer uso da minha “autoridade espiritual” para livrar Clotilde daquilo. Sentia os olhares me cobrando.

Lá no morro tinha (tem) uma congregação de uma tradicional denominação pentecostal. O filho de Clotilde, Humberto, que também sofria de transtornos psiquiátricos – uma vez, inclusive, quase me agrediu no meio da rua – ora frequentava as Testemunhas de Jeová, ora os Mórmons, ora nossa Igreja, ora os pentecostais.

Humberto convocou a galera da “consagração” – o nome dado para a turma que faz campanha de jejum e oração – para uma batalha contra a “legião” que assolava sua mãe.

Deu em quê? Nada. Ou melhor. Domingo ela chegou à Igreja ainda mais transtornada. E o transtorno crescia...

Até que eu resolvi apelar. Pensei, pensei, pensei. Orei, orei, orei e me lembrei de um especialista. Uma espécie de GhostBuster. Um pastor pentecostal com quem meu irmão caçula teve uma aproximação e algumas “experiências”.

Liguei para ele, que prontamente me atendeu. Fomos até à casa de Clotilde. Indagamos – ou ele indagou? – por coisas enterradas, objetos consagrados, pessoas consagradas... Havia mitos sobre aquela família.

Egon – o pastor especialista – chamou Clotilde para o meio da roda. Pediu um pouco de óleo. Deram azeite mesmo. Numa colher. Ele orou. Consagrou o óleo. Ungiu Clotilde.

Aquela era ora do sinistro acontecer. Eu esperava que ela pulasse, espumasse, gritasse. Que alguma coisa, pelo amor de Deus, acontecesse. Era preciso me convencer das forças ocultas. Do bem e do mal.

Então... Nada! Não aconteceu nada. Egon terminou a oração e me disse que ela não estava possuída, mas oprimida. Acrescentou que “quem” estava ali tinha levado uma boa onda de choque e que ficaria distante por algum tempo.

Clotilde permaneceu exatamente como dantes. Ficamos nessa por anos.

Descobri, tempos depois, que o tal psiquiatra em que a levavam, na verdade, era uma emergência onde apenas buscavam novas receitas do velho calmante. E mais igrejas. Igrejas próximas. Igrejas distantes. E mais calmante. E Clotilde definhava...

Parou de ir à Igreja. Levávamos pão e vinho em sua casa para, de alguma forma, mantê-la integrada. Gente da Igreja a visitava com frequência.

Levei-a ao posto de saúde do bairro, na esperança de conseguir algo. Nem consulta foi possível marcar. A burocracia exigia um comprovante de residência no nome dela.

Não conseguimos reverter aquele quadro. Anos de oração. Vigílias. Pastores aos montes. Especialistas em demônios...

Aquela “batalha” apontava para nossa incapacidade de reagir aos que, talvez, fossem os verdadeiros problemas.

Clotilde era vítima de um machismo insuportável. Tinha, sim, sérios problemas de saúde mental. Problemas que nunca foram tratados com a devida seriedade. E tinha um casamento de aparência.

A irmã dela a levou para o Ceará, onde seria tratada por profissionais. Definhou ainda mais. E, por mais louco que pareça, morreu ano passado. Engasgada com cuscuz.

Fico pensando que, de alguma forma, Clotilde mantinha nossa necessidade de fantasiar.

E a gente gostava.


Ou não.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Quem dá a Deus, empresta aos pobres!?












Tomo a pena na mão para um capítulo que, talvez, sintetize um pouco da distorção entre direitos e obrigações, na mentalidade clássica do protestantismo de missão.

Conrado (nome fictício) era um coroa gente boa. Gostava de conversar, contar piada e histórias da sua vida empreendedora.

Seus pais eram espanhóis, agricultores. Ele nascera no interior de SP, vindo para o Rio estudar no tradicional colégio de nossa denominação. Por aqui ficou. Trabalhou muito. Mais que o normal. Fez fortuna. Mas expôs sua família à distância e frieza nas relações. Essa é, ao menos, a minha leitura.

Foi membro da Primeira Igreja do Rio. Depois, da maior Igreja de nosso bairro. Sua empresa era bem sucedida. A Igreja votava o alvo da campanha de missões. Ele esperava a arrecadação e, então, do próprio bolso, passava um cheque dobrando o valor. Mantinha a farmácia que atendia os necessitados da Igreja. Era membro de um importante clube de cavalheiros, onde também fazia sua “ação social”. Era vigoroso. Forte mesmo, do tipo que, nas obras do novo templo, manejava melhor do que eu uma picareta. Isso aos oitenta anos.

Em nossa Igreja, era uma espécie de padrinho. Socorria inúmeros necessitados. Socorreu a mim. Sem qualquer alarde. Bancou boa parte da obra do novo templo. Isso significa, pelas minhas contas, doações em torno de 150 mil reais. Financiava velórios, tratamentos dentários, cestas básicas...

Sua empresa, já com a terceira geração da família à frente, entrou em decadência. Testemunhei seu esforço para sustentar o negócio, injetando na empresa, pela venda do patrimônio pessoal, algo em torno de 2 milhões. Nada. A empresa afundou. Via-se como Jó. Orava como Jó.

Aquele homem afável e generoso era linha dura com aquilo que consideramos “direitos trabalhistas”. Ele reclamava de ter que dar férias a seus funcionários: “Eu vim da roça. Na roça, sem trabalho, não há comida. O agricultor não tira férias”. Claro que esbarramos nesse ponto algumas vezes. Eu o respeitava muito. E ele a mim. Gostava do garoto que viu crescer na Igreja.

Vi aquele homem morrer num hospital público. De maneira triste e solitária. Vi sua solidão no fim da vida. Vi que somos, de verdade, quase nada.

A zeladora da Igreja era empregada doméstica na casa dele. Daí veio minha maior surpresa.

Ela me procurou depois do falecimento, sem saber o que a família dele, distantes que moravam no mesmo bairro, faria com ela.

Eu imaginei que fossem demiti-la, já que provavelmente se desfariam do casarão em que ele morava, num ponto nobre do bairro.

Foi então que ela me revelou: em quase 10 anos, nunca recebeu vale-transporte, hora-extra, férias ou décimo terceiro. Não tinha nenhum direito trabalhista.

Perguntou-me o que deveria fazer diante disso. Disseram-lhe que, se entrasse na Justiça, teria que esperar anos para receber, já que havia muitos empregados da empresa dele na frente, aguardando suas indenizações.

Eu disse a ela, claramente: “Diga que vai procurar um advogado. Que você não era funcionária da empresa. Que precisa dos seus direitos”. Calculamos, aproximadamente, quanto isso significava. A soma a deixou feliz, já que daria para reformar a casa, que estava num estado bastante degradado.

No primeiro dia após aquela conversa, depois de muito se encorajar, Quitéria (nome fictício da zeladora) teve coragem de dizer ao genro de Conrado, que tomava conta da casa: “Meu pastor disse que eu tenho direitos”.

Acho que o homem ficou uma fera. E teve o desplante de me telefonar.

O celular tocou. Não reconheci o número. Atendi. Ele se identificou. Imediatamente se pôs a me questionar, indagando o porquê da minha orientação. Sugeriu que eu poderia ter algum interesse escuso.

Eu rebati prontamente. Ele insistiu. Mostrou-me toda a folha de serviços prestados por Conrado ao “Reino de Deus”. Perguntou se era justo fazer isso com um “obreiro tão valoroso”.

Eu me chateei. Claro. Tentei explicar ao nobre interlocutor, um engenheiro da Petrobras e professor da Escola Dominical de outra Igreja do bairro, que os direitos trabalhistas de Quitéria não tinham qualquer relação com a atuação do Conrado na Igreja.

Ele se enfureceu. Disse que era um desrespeito com o falecido. Que era uma mancha em sua memória. Que “Deus me perdoasse”.

Não. Não o mandei para lugar nenhum. Sabe quando você se arrepende de algo que deveria ter feito?

A ligação terminou.

Quitéria chegou domingo à Igreja feliz da vida. O tal genro havia proposto a ela um acordo. Era 20% menor do que o valor que calculamos. Mas ela estava satisfeita. Eu também.

O genro ficou realmente triste. Era, para ele, de fato, uma ofensa. O que daria sentido a esse pensamento?

Fico pensando: será que Conrado, ao dar a “Deus”, emprestava aos pobres?

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Se trepar, a Ceia não vai tomar!














Fui católico durante a minha infância em Valença, no interior do Estado. Nominal, ao menos. Fiz catecismo, primeira comunhão. Minha mãe me ensinou que eu jamais poderia comungar – receber a comunhão na missa – sem que antes me confessasse. Eu obedecia. Procurava o padre antes da missa. Ele me fazia perguntas básicas: masturbação, passar a mão em meninas, mentir e desobedecer. Ouvia as respostas. Indicava a penitência. Cumpri umas três ou quatro vezes...

Uma das mais terríveis e cruéis formas de dominação da Igreja sobre a vida de alguém é a repressão da sexualidade dos jovens e adolescentes.

E olha que eu nem estou falando de diversidade sexual, mas do padrão heteronormativo. Esse secularmente aceito, e bizarramente repelido nos arraiais evangélicos.

Como você sabe, fui evangélico durante dezesseis anos. Metade da minha vida. Quase toda a minha juventude. Falo do que vivi. Do medo. Do peso. Da dor. Da culpa.

Em nosso meio, os ritos, que não são vistos como sacramentos, são utilizados como forma de se estabelecer controle e distinção entre os “espirituais” e os “carnais”.

Por exemplo: o indivíduo, para ser batizado, precisa confessar publicamente que não bebe, não fuma, não serve aos “ídolos”, não joga no bicho. Se casado, tem que ser no papel. Se solteiro, e virgem, deve prometer guardar-se da prostituição. Se solteiro, mas já “iniciado”, deve confessar abstenção até o casamento.

Se reza essa cartilha, é batizado. A partir de então, pode participar da “Ceia do Senhor”, a versão protestante da Comunhão/Eucaristia.
No entanto, ainda assim, ou agora ainda mais, o controle e a fiscalização são fortíssimos. Se depois de batizado, o infeliz “cair em pecado”, o discurso oficial veda sua participação na Ceia, até que a “comunhão com Deus” seja restabelecida.

Em função disso, as pessoas que sinceramente querem “servir a Deus”, se excluem da participação.

Vão aos cultos. Cantam. Oram. Leem a Bíblia. Dão o dízimo. Mas não comungam do pão e do vinho.

Nos meus tempos de pastor, praticávamos na Igreja a chamada “Ceia Aberta”. Significa dizer que todos os que estivessem no culto, cristãos ou não, eram convidados a comer do pão e beber do vinho.

Ainda assim, algumas pessoas, membros da Igreja, deixavam de participar por se sentirem “em pecado”.

Certa vez, enquanto os diáconos distribuíam o pão e o vinho, percebi que um casal de jovens namorados não quis receber. Era mais que uma confissão de culpa. O que eles estavam fazendo de “errado”? Que tipo de sentimento nutriam em relação a si mesmos?

Chamei-os para conversar. Não acredito que tenham ficado preocupados com o teor da conversa. Éramos amigos.

Iniciei o bate-papo perguntando se estavam usando algum contraceptivo. Aquela pergunta os desarmou. Tentei encorajá-los a construir o amor, sem culpa. Disse com clareza: a Ceia é a celebração de um compromisso de vida. De comprometer a vida com a transformação do mundo, não temendo nem a morte. Se vocês estão nesse caminho, participem!

A partir daquele dia, a mesa estava, de novo, aberta para eles.

Claro que nem sempre agi assim. Errei e acertei. Sei que também reproduzi esse discurso baixo de culpa e controle. Mas acho que aprendi.

Sem amor, a Ceia, que deveria ser um momento de integração, união e comunhão, transforma-se em instrumento de opressão e dor. A Igreja, que deveria sinalizar a paz, promove a culpa.


Se é para radicalizar a leitura do texto bíblico, que se faça: Judas e o inconstante Pedro estavam presentes naquela hora da última Ceia. Jesus lhes deu lugar à mesa. Por que qualquer pessoa ficaria de fora?